Um conto popular diz que, quando um sapo é colocado em um recipiente com água quente, ele imediatamente pula fora. Contudo, caso o mesmo anfíbio esteja em um objeto com o líquido em temperatura ambiente, fica confortável durante todo o tempo em que a água é aquecida gradativamente. O problema é que, quando ela ferve, causa sua morte.
Essa historieta reproduz a dinâmica institucional que temos visto em relação à liberdade no mundo contemporâneo, com o caso venezuelano sendo um dos melhores exemplos. Isso porque, durante a Guerra Fria, golpes de Estado foram responsáveis por quase três em cada quatro colapsos democráticos. O levantamento é dos professores de Ciência Política da Universidade de Harvard e autores de Como as Democracias Morrem Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Foi dessa forma que sistemas políticos democráticos colapsaram no século XX em países como Argentina, Brasil, Chile, Gana, Grécia, Guatemala, Nigéria, Paquistão, Peru, República Dominicana, Tailândia, Turquia e Uruguai. Nesses casos, tudo ocorreu em um único grande ato, de forma espetacular e por meio da coerção de forças militares.
Todavia, a maioria dos recessos democráticos ocorridos após a Guerra Fria foram marcados pela morte da liberdade, não pelas mãos de generais, mas de líderes eleitos que subvertem o próprio processo que os levou ao poder. Comumente isso ocorre de forma gradativa e pouco visível, em um fenômeno denominado regressão constitucional, como cunhado pelos estudiosos de Direito Constitucional e professores da Universidade de Chicago Aziz Huq e Tom Ginsburg.
Assim, tal como o exemplo do sapo, eventuais perdas de liberdades também ocorrem aos poucos. Se uma autoridade central retira todas de uma vez, a reação institucional por parte de grupos da sociedade é contundentemente contrária. Porém, caso a liberdade seja removida aos poucos, a resistência é menor, pois frequentemente indivíduos abrem mão de princípios e valores por conveniências de curto prazo.
Um notável exemplo de cancelamento da liberdade ocorreu na Venezuela, em um processo que durou duas décadas e meia para se consolidar. Ele começou a partir de instabilidades institucionais no início dos anos 1990 e se acentuou com a vitória do socialista Hugo Chávez nas eleições de 1998. À época, ele atacava uma “elite governante corrupta”, prometia construir uma democracia “autêntica” e que utilizasse a riqueza proveniente do petróleo a fim de melhorar a vida dos mais pobres.
Na presidência, conseguiu, dentro das regras do jogo, permissões constitucionais que aumentaram o poder de seu cargo em 2000. Em 2004, estabeleceu uma submissão do Judiciário pelo Executivo ao aparelhar a Suprema Corte ao alterar sua composição. Nesse sentido, houve um processo de captura de árbitros, o que fornece ao governo concomitantemente uma defesa, mas também uma arma, na medida em que permite impor a legislação de forma seletiva, favorecendo aliados e punindo adversários.
Em 2006, o regime chavista passou a restringir, de forma mais explícita, a liberdade de expressão e de imprensa. Foi determinado o fechamento de uma das principais emissoras de televisão do país, o que provocou outros veículos jornalísticos a praticarem uma autocensura. A Venevisión, por exemplo, anteriormente era considerada como pró-oposição, mas mal cobriu a oposição durante a eleição de 2006: de acordo com levantamento realizado pela União Europeia, seu tempo de cobertura ao então presidente Chávez foi quase cinco vezes superior a todos os seus rivais somados, o que, de certa forma, contribuiu para sua vitória. Posteriormente, a emissora decidiu interromper as coberturas políticas, optando por programações de entretenimento.
O Judiciário foi controlado a ponto de não haver nenhuma decisão contrária ao regime entre 2004 e 2013, mesmo em um universo de mais de 45 mil decisões. O levantamento consta na obra O TSJ a Serviço da Revolução, do advogado venezuelano Antonio Canova. Dessa forma, Chávez sentiu-se confortável e passou a prender e exilar políticos, juízes e figuras da mídia que eram consideradas oposicionistas, sempre com acusações dúbias.
Além disso, mesmo após todos os fatos listados, em 2011 uma pesquisa da Latinobarómetro apontou que 51% dos venezuelanos acreditavam estar em um país “completamente democrático”, com uma satisfação superior a 80%. Por conseguinte, a maioria não percebeu que “a água estava fervendo”.
Posteriormente, o processo eleitoral passou a ser marcado por maiores evidências de fraudes. Em 2014, por exemplo, o governo prendeu Leopoldo López, líder da oposição e principal concorrente do sucessor de Chávez, Nicolas Maduro.
De 4º maior PIB per capita do planeta na década de 1950, segundo o Banco Mundial, o ambiente de negócios venezuelano piorou a ponto de se tornar o segundo país com menos liberdade econômica do mundo, consoante a Heritage Foundation. Como resultado, atualmente 94,5% dos venezuelanos vivem na pobreza, de acordo com estudo da Universidade Católica Andrés Bello.
Por fim, quando “a água estava evaporando”, os protestos populares foram deflagrados e se tornaram mais intensos, mas o Estado venezuelano já era tão grande, forte e autoritário que a polícia chavista reprimiu as manifestações a partir de milhares de prisões e centenas de assassinatos, sem maiores consequências.
Apenas em 2017, após a usurpação do poder do Congresso e da apropriação das competências da Assembleia Nacional pela Suprema Corte, a Venezuela passou a ser amplamente reconhecida internacionalmente como uma autocracia. O país era a democracia mais duradoura da América do Sul, que vigorava desde 1958. Assim, levou-se quase duas décadas desde a ascensão de Chávez na presidência para o sistema se tornar uma ditadura. O sapo perdeu sua vida — isto é, a liberdade foi cancelada.
A corrupção das instituições venezuelanas e a escalada do autoritarismo foram parte de um processo gradual e lento. Os alarmes da sociedade não foram despertados, e os críticos eram considerados exagerados ou falsos alarmistas. É um exemplo pedagógico de como a erosão das liberdades pode ser imperceptível para a maioria dos indivíduos, mas não se trata de uma exclusividade. Na última década, por exemplo, Geórgia, Hungria, Nicarágua, Peru, Filipinas, Polônia, Rússia, Sri Lanka, Turquia e Ucrânia também apresentaram quedas expressivas e consecutivas em levantamentos especializados de qualidade democrática, tais quais o Freedom House da The Economist. Como afirmam Levitsky e Ziblatt, “o retrocesso democrático hoje começa nas urnas”.
Um outro alerta de postura de um defensor da liberdade a fim de evitar seu cancelamento se encontra entre as Fábulas de Esopo, um escravo e contador de histórias que viveu na Grécia Antiga. Na história do javali, do cavalo e do caçador, ele narra que havia uma séria disputa entre os animais. Então, o cavalo pediu ajuda ao caçador para se vingar. Ele concordou, mas disse: “Se deseja derrotar o javali, deve permitir que eu ponha esta peça de ferro entre as suas mandíbulas a fim de que eu o guie com estas rédeas, e que coloque esta sela nas suas costas, para que possa me manter firme enquanto seguimos o inimigo.” O equino aceitou as condições e o caçador logo o selou e bridou. Assim, com a ajuda do caçador, o cavalo logo venceu o javali, e então disse: “Agora, desça e retire essas coisas da minha boca e das minhas costas.” Mas o caçador se negou. “Eu o tenho sob minhas rédeas e esporas, e por enquanto prefiro mantê-lo assim”, o que se manteve para o resto dos seus dias.
Esopo conclui que indivíduos incautos caem em pior condição — renunciam à liberdade — acreditando estarem sendo ajudados — em troca de uma suposta (e falsa) segurança. Parafraseando Thomas Jefferson, se abdicarmos da eterna vigilância, mais cedo ou mais tarde, a liberdade será cancelada. Para evitar essa tragédia, não se pode jamais abrir mão de princípios e valores por conveniências de momento.