Comemorou-se, no dia 17 de abril de 2017, o centenário de Roberto Campos. A sua figura é importante no processo de redemocratização do Brasil, pois conhecia em profundidade não só a natureza patrimonialista do Estado, como também as mudanças pelas quais o país enveredou no segundo pós-guerra, tendo participado dos esforços de modernização e democratização das nossas instituições.
Durante décadas a figura do embaixador Roberto Campos tentou ser riscada pelo establishment do Itamaraty, porquanto representativa de um perigo para os que tinham se encastelado no regime de sesmarias ao redor de uma opção pelo “socialismo real”, após a derrota dos alemães na Segunda Guerra Mundial. Quando nosso autor optou por se habilitar em concurso para trabalhar no Ministério das Relações Exteriores em pleno Estado Novo, no ano de 1938, a maior parte dos nossos diplomatas se colocava no contexto dos interesses do Eixo. Mas, quando as forças de Adolf Hitler (1889-1945) começaram a ser derrotadas pelos Aliados na Segunda Guerra Mundial, os diplomatas correram céleres para se arrumarem em torno aos representantes das democracias ditas “populares”, chefiadas pela antiga União Soviética. Guinada de 180 graus que deixou intacto, contudo, o dogmatismo e o gosto pelo “poder total”.
Entre os Aliados, os itamaratianos fizeram a sua escolha: os russos, que representavam a nova força que se estabelecia no mundo, contrária aos americanos. A respeito do clima que se vivia no Ministério das Relações Exteriores no contexto dessa arrumação ideológica, escreve Roberto Campos: “O Itamaraty, situado na avenida Marechal Floriano (a antiga rua Larga de São Joaquim), era comumente apelidado de Butantã da rua Larga. – São cobras, mas fingem que são minhocas – dizia-me de seus colegas o admirável João Guimarães Rosa (1908-1967), que depois se tornaria o meu escritor preferido” (Roberto Campos, Lanterna na popa – Memórias, Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, pg. 31).
Roberto Campos e um grupo minoritário representaram a opção por um conceito de diplomacia afinado com a democracia ocidental e alheio à busca do “democratismo” que terminou vingando no mundo comunista. Como ele mesmo destacava, virou uma espécie de “profeta da liberdade”, à maneira, aliás, de Alexis de Tocqueville (1805-1859), que se descrevia a si próprio como um “São João Batista que prega no deserto”. A respeito da opção liberal, frisava Roberto Campos na sua obra autobiográfica, A lanterna na popa: “Em nenhum momento consegui a grandeza. Em todos os momentos procurei escapar da mediocridade. Fui um pouco um apóstolo, sem a coragem de ser mártir. Lutei contra as marés do nacional-populismo, antecipando o refluxo da onda. Às vezes ousei profetizar, não por ver mais que os outros, mas por ver antes. Por muito tempo, ao defender o liberalismo econômico, fui considerado um herege imprudente. Os acontecimentos mundiais, na visão de alguns, me promoveram a profeta responsável”.
Talvez o traço mais marcante da personalidade intelectual de Roberto Campos tenha sido a capacidade de rir de si próprio, estabelecendo uma saudável relatividade nos seus pontos de vista. Definiu-se a si mesmo, no primeiro capítulo de sua autobiografia, como o “analfabeto erudito”. Analfabeto em matéria de especialidades cartoriais que o habilitariam para um concurso público, mas erudito por uma inegável formação humanística haurida no Seminário, onde cursou os estudos completos de Filosofia e Teologia, além de ter recebido as “Ordens Menores” (hostiário, leitor, exorcista, acólito).
Assim, a passagem de Roberto Campos pela divisão de “secos e molhados” (nome jocoso dado pelo nosso autor à área de Assuntos Econômicos do Itamaraty) foi bastante profícua, tendo-o colocado, junto com Eugênio Gudin (1886-1986), na linha de frente da formulação das políticas econômicas, que se tornariam, após a Conferência de Bretton Woods em 1944, a peça forte das relações diplomáticas (da mencionada Conferência, Roberto Campos participou como assessor da equipe brasileira chefiada pelo professor Gudin).
Duas etapas podem ser reconhecidas na formação do liberalismo econômico no nosso autor: a primeira, onde a influência maior veio de John Maynard Keynes (1883-1946), e a segunda, já derrubado o Muro de Berlim, com uma aproximação maior ao pensamento da Escola Austríaca – mas sempre mantendo atenta a vista na construção de instituições que conduzissem o Brasil ao pleno desenvolvimento econômico com preservação da liberdade.
Roberto Campos era crítico do Patrimonialismo. Ele foi, a meu ver, um crítico sistemático das práticas patrimonialistas com a tendência a fazer do Estado negócio familiar. Na sua última fala no Congresso, ao se despedir da vida pública, em 1999, frisou naquela bela página divulgada pelo Estadão: “ (…). Sempre achei que um dos mais graves problemas dos subdesenvolvidos é a sua incompetência na descoberta dos verdadeiros inimigos. Assim, por exemplo, os responsáveis pela nossa pobreza não são o liberalismo, nem o capitalismo, em que somos noviços destreinados, e sim a inflação, a falta de educação básica, e um assistencialismo governamental incompetente, que faz com que os assistentes passem melhor que os assistidos. Os inimigos do desenvolvimento não são os entreguistas que, aliás, só poderiam entregar miséria e subdesenvolvimento, e sim os monopolistas, que cultivam ineficiências e criaram uma nova classe de privilegiados – os burgueses do Estado. Os promotores da inflação não são a ganância dos empresários ou a predação das multinacionais e sim esse velho safado, que conosco convive desde o albor da República – o déficit do setor público” (“A despedida de Roberto Campos”. O Estado de São Paulo, 31/01/1999, p. A8).
Ricardo Vélez-Rodriguez é membro da Academia Brasileira de Filosofia e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, professor de Filosofia, aposentado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e ex-Ministro da Educação.