Uma cor? Ao longo da história, o preto configurou-se como um ponto de interrogação, mas também como um fato, banhando todas as coisas em uma ausência, tornando aparente a opacidade, sugerindo todas as nuances da existência. Em uma série de pinturas publicadas na década de 1960, o pintor Ad Reinhardt, pioneiro da arte conceitual, apresentou sua própria ideia de preto: uma série de pinturas que expressam uma espécie de ilusão de ótica, pois depois de observá-las por alguns minutos, o que parece ser preto neles, e isso é tudo, na verdade não é. O preto de Reinhardt é uma mistura de tons sutis de malva profundo, roxo, magenta e cinza. No final, a tela preta aparentemente uniforme revela uma grade variável de tons. A pintura muda durante a duração de sua visualização. O “preto”, literalmente desaparecendo ao olhar para ele.
Algum tempo depois, em um pequeno texto intitulado ‘Sobre o universo negro’, o pensador francês François Laruelle também gostou de compartilhar sua ideia a respeito, gerando uma ruptura na corrente de pensamento que vinha marcando essa cor ou nenhuma cor ou qualquer outra coisa. Como ao olhar para a pintura de Reinhardt, sua ideia do preto como princípio cosmológico percorria o oculto. O preto era, para Laruelle, inseparável das condições do pensamento e de seus limites. Esse filósofo chegou a dizer algo como, se você não olhasse, não existiria, não se romperia em outras cores, a ilusão de ótica não surgiria. Separado do “Mundo” que fazemos à nossa imagem demasiado humana, o preto teria de ser exatamente o oposto. Mas então o que é?
Teremos que voltar muito mais longe. Embora seja Caravaggio quem talvez estabeleça uma das principais diretrizes sobre a noção de negro com profundidade, mesmo antes do Renascimento que o precede, eles já pareciam entender algo semelhante. A história da arte é um pano de fundo claro para a eterna questão, mas também a história da filosofia. O pensamento, em todas as suas formas, tenta abordar o que quer que seja que defina o mundo, e se algo é, o mundo é negro, então teremos que começar por aí.
E assim por diante até o infinito
O médico, astrólogo e místico Robert Fludd sentiu a inércia de especular sobre essas lógicas nos séculos 16 e 17: o que existia antes do universo negro, o que fez o negro como em um esforço para encontrar o fim de um fio que na realidade, não existe. Mas o preto existe. Para Fludd, o que vinha antes era o nada vazio, uma espécie de “pré-universo” ou “não-universo”. Ele o representou com um simples quadrado preto que se destaca de todo o seu trabalho meticuloso e detalhado.
Entre 1617 e 1621, com sua obra principal, uma ambiciosa teoria sincrética multivolume de tudo, intitulada História Metafísica, Física e Técnica dos Dois Mundos, o Maior e o Menor, Fludd apresentou dezenas de diagramas, tabelas e imagens que orbitam ao redor do universo. Entre todos eles, o quadrado preto parece estar gritando para nós, cercado por notas em todas as suas bordas aquela frase: “E assim por diante até o infinito…”
Fludd demonstrou consciência dos limites da representação, dos limites da própria existência, repetindo o de “Et sic in infinitum”. Como uma intuição que insinuava que, se sobrasse alguma coisa, teria que ser apenas negação, isso era preto, negando a si mesmo? “Só uma forma de representação que nega a si mesma poderia sugerir um nada anterior a toda existência, uma descriação anterior a toda criação. E assim obtemos uma ‘cor’ que não é realmente uma cor, uma cor que nega ou consome todas as cores”, diz Eugene Thacket em sua dissecação escrita das origens e explicações do preto publicado em The public domain review.
A escuridão hermética
Que Fludd tenha decidido cercar o quadrado preto com uma espécie de sentença eterna não é surpreendente, observa Thacket, que explica: “Sua própria filosofia sincrética combinava elementos do neoplatonismo, hermetismo e cabala cristã, com um toque de alquimia, teoria musical, e Rosacruz. Fludd foi influenciado desde cedo pela obra de Paracelso, e ficou intrigado com a ideia de Deus como um alquimista, misturando matéria para produzir a estranha mistura que é o universo”.
Sempre esteve lá, na mente humana e nas mãos, o negro da terra profunda. Para os antigos egípcios, o preto tinha associações positivas, sendo a cor da fertilidade e do rico solo negro inundado pelo Nilo, era a cor de Anúbis, o deus do submundo, que tomava a forma de um chacal preto e oferecia proteção do mal aos mortos. Assim, na Grécia Antiga, passou a ser a cor do submundo e tudo o que isso implicava, mais tarde, separado do mundo dos vivos pelo rio Aqueronte, cujas águas eram negras. Aqueles que cometeram os piores pecados foram enviados ao Tártaro, o nível mais profundo e sombrio. No centro estava o palácio de Hades, o rei do submundo, onde estava sentado em um trono de ébano negro.
Foi uma das primeiras cores usadas nas pinturas rupestres neolíticas. No Império Romano, o pensamento herdado de clássicos como Platão fez dele a cor do luto. No século 14, realeza, clero, juízes e funcionários do governo começaram a usá-lo em grande parte da Europa. Tornou-se a cor usada por poetas românticos ingleses, empresários e estadistas no século 19, e a cor da elegância e da chamada alta costura no século 20. Na prática, joga-se com ela, estabelecem-se parâmetros sociais a partir de sua condição de questão que continua a acompanhá-la até os dias atuais.
“Ao mesmo tempo é uma cor e uma não-cor. Quando a luz se reflete no preto, ela o transforma e transmuta. Abre seu próprio campo mental”, considera o pintor Pierre Soulages. Era a cor sem cor da revolução industrial, alimentada em grande parte pelo carvão e mais tarde pelo petróleo. Desde o século 18, a fumaça do carvão escureceu gradualmente os edifícios das grandes cidades da Europa e da América. Em 1846, a área industrial de West Midlands da Inglaterra era comumente chamada de ‘o país negro’, aquelas ruas escuras e céus esfumaçados que moldavam a literatura da época.
Preto, explica Michel Pastoreau em seu livro Black: The history of a color, assumiu novos significados para os primeiros europeus modernos quando começaram a imprimir palavras e imagens em preto e branco e a absorver o anúncio de Isaac Newton de que, afinal, preto não era uma cor. “O uso do preto por Fludd em sua cosmologia é indicativo do que a teoria moderna das cores disse sobre o preto”, diz Thacket.
A palavra traiu outra coisa que, impressa, começou a permear o pensamento humano. A tinta preta surgindo na claridade do pergaminho, depois do papel, levou a verificar a dualidade da existência em ambas as tonalidades, dois vértices que sustentam a vida. Por esta razão, o preto não é considerado hoje uma cor no sentido convencional do termo. A teoria das cores se refere a ela como “não-cromática” ou “acromática”.
De acordo com a teoria das cores
Por que marcar como uma cor? E porque não? Preto é cor, não apenas no sentido que costumamos designar este ou aquele objeto como “preto”, mas no sentido de que o preto contém todas as cores, é a cor que absorve todas as outras cores, um buraco que existe para que tudo mais deixa de ser ou não.
Quando Goethe publicou sua Teoria das Cores em 1810, ele cortou toda a visão fundindo a ciência com a própria estética. A principal contribuição de Goethe foi distinguir o espectro “visível” do “óptico” e possibilitar uma ciência da óptica distinta da estética: “Se mantivermos os olhos abertos em um lugar totalmente escuro, experimentamos uma certa sensação de privação. O órgão se abandona, se recolhe em si mesmo. Falta aquele contato estimulante e agradecido por meio do qual ele se conecta com o mundo exterior”.
Então, vemos preto, mas o que exatamente estamos vendo quando vemos preto? Luz ou ausência de luz? Se a ausência de luz é explicada pelo preto, agora o branco deve seguir. Duas entidades estranhas, segundo o tratado de Schopenhauer, que, sem defini-las, dialogam incessantemente com essa dualidade. Em alguns pontos acréscimos ou privações de luz, e em outros pontos preto e branco funcionam mais como necessidades lógicas, formando os pólos absolutos da percepção da cor, ou seja, o preto e o branco nunca são realmente vistos, mas determinam a percepção das cores.
Em 2014, uma empresa britânica de alta tecnologia anunciou que havia feito o preto mais escuro de todos os tempos. Feito pelo cultivo de nanotubos de carbono em uma superfície de metal, o Vantablack, como os cientistas o chamaram, retém a luz a tal ponto que a superfície parece um vácuo. Lá estamos nós, gravitando em um enorme buraco que devora tudo. A existência negra é a própria existência?