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A revolução da linguagem neutra nas escolas

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O termo “revolução” foi utilizado por Copérnico na obra De revolutionibus orbium coelestium (1543), exprimindo a ideia de um movimento cíclico e predeterminado. A mudança de significado do vocábulo aconteceu somente em 1789, quando se derrubou a monarquia absolutista na França do Antigo Regime. A partir daí, o termo “revolução” passou a expressar a ideia de uma nova ordem de realidade: novus ordo saeclorum. Na sequência, numerosos movimentos e tendências políticas e intelectuais buscaram a supressão do antigo e a edificação de algo inédito, considerado, a priori, como melhoria ou aperfeiçoamento.

A esse respeito, Hannah Arendt fez uma reflexão que teve como referência a Revolução Americana (1776), que teria sido fundada sobre os princípios de proteção da liberdade individual (Constitutio libertatis), distinguindo-se da Revolução Francesa e da Revolução Russa (1917), fundamentadas sobre o princípio da necessidade, o que justificaria as ações de repressão e de ampla reengenharia social que foram estabelecidas.

Em que sentido a linguagem neutra pode ser considerada uma revolução?

Ora, trata-se de um programa político conduzido por grupos militantes que atuam nas instituições e redes sociais com o objetivo de fomentar uma mudança radical no pensamento, nas mentalidades e nos costumes marcados pelo imaginário judaico-cristão, que identifica gênero com o sexo biológico. A meta é estabelecer um modo de existência social considerado superior àquele ditado pela sociedade tradicional, percebida como opressora e aviltante.

Esse aspecto provém do discurso pós-moderno, que minimizou a defesa dos direitos do cidadão pelo Estado democrático de direito para apoiar a expressão dos interesses e necessidades de minorias, consideradas excluídas e marginalizadas.

Nesse sentido, a ideia principal da linguagem neutra é ensinar novas formulações sintáticas e lexicais que correspondam a uma paleta variada de identidades. Fabrica-se uma ‘’novilíngua’’, na acepção emprestada por George Orwell ao pesadelo totalitário descrito em 1984. E não é à toa que se faz isso. Se o objetivo é gerar uma transformação radical na sociedade e na cultura – uma revolução -, é preciso engendrar um projeto de linguagem, que, como se sabe, não apenas designa o nome das coisas, mas instaura uma ordem social imaginada, uma sensibilidade, um modo de se estar no mundo.

Esse programa político é também pedagógico, pois se pretende ensiná-lo nas escolas, de forma sistemática, inserindo-o no conteúdo da disciplina de Língua Portuguesa, e informalmente, por meio da regulação das interações espontâneas entre professores e alunos e da vigilância estrita das maneiras de dizer.

Assim sendo, o objetivo dessa revolução não é mais destituir um governo ou substituir um sistema econômico. A linguagem é que se torna o campo de batalha. Daí o ataque dirigido contra a gramática normativa, la Bastille dos novos jacobinos de plantão. Quem fala o que não deve é ‘’guilhotinado’’ nas redes sociais (‘’cancelado’’). Eis que o alvo dos revolucionários passa a ser o emprego de artigos e pronomes masculinos, que, no plural, tornam-se uma ameaça a outros tipos de subjetividade. Ao invés de todos, propõe-se que se empregue o pronome neutro ‘’todes’’ e que seja feita a substituição dos artigos feminino e masculino por um “x”, “e” ou até pela “@”. O resultado? “amigo” ou “amiga” virariam “amigue” ou “amigx”…

Como os pais dos alunos encaram hoje o ensino da linguagem neutra? Sem dúvida, alguns aplaudem, mas há aqueles que não apreciam uma interferência tão invasiva na orientação sexual dos filhos, que dista das suas crenças religiosas e de sua visão de mundo.

Há que se defender a liberdade daqueles que não aderem a um programa midiático que se tornou tão hegemônico no âmbito das instituições que ficou fora do alcance da crítica intelectual e da contraposição de quem pensa diferente. Há que se defender a liberdade de criação coletiva, anônima e espontânea da língua, essa construção multissecular, vasta e incomensurável, feita por todos e por cada um, que é reinventada a cada dia, ao sabor dos humores da natureza e da história, em sua infinita inteligência e plasticidade. Há que se defender o patrimônio linguístico do controle e da censura das patrulhas inquisitoriais de todos os matizes que tentam conformá-las às suas ideias e valores, tão discutíveis quanto transitórias…

 

Suzana Marly da Costa Magalhães é pós-doutora pela Fundação Getúlio Vargas na área de História, Política e Bens Culturais. Doutora em Letras pela Université de Paris III (Sorbonne Nouvelle). Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Tem especialização Latu sensu em Gestão de Ensino a Distância pela Universidade Federal Fluminense, graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Ceará e em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É responsável pelo canal do YouTube e pela página do Facebook intitulados Esquerda e direita na educação.

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