A rotina de cada um de nós, no Brasil, é permeada por eventos kafkianos, entendidos como tais os abusos diários praticados por um Estado burocrático e disfuncional, cujos atos muitas vezes escapam à nossa compreensão e a parâmetros básicos de razoabilidade, fazendo com que vivenciemos os absurdos do realismo fantástico descrito pelo escritor tcheco. Assim nos sentimos sempre que devemos cumprir exigências confusas emanadas do poder público, que devemos batalhar pela obtenção de licenças, alvarás e análogos, e que nos envolvemos nos meandros de processos administrativos e judiciais.
Porém, um dos acontecimentos mais kafkianos dos últimos tempos acaba de ser noticiado sob a singela manchete: Moro vira réu em ação movida pelo PT por alegados prejuízos à Petrobras[1]. Trata-se de uma ação popular ajuizada por nomes como Rui Falcão, José Guimarães e outros parlamentares petistas contra o ex-juiz Sérgio Moro, por meio da qual os autores alegam que as decisões do então magistrado na condução dos processos envolvendo a Petrobras, no âmbito da Operação Lava-Jato, teriam violado a moralidade pública e causado graves prejuízos tanto à petrolífera quanto a toda a cadeia produtiva nacional. Após dezenas de páginas contendo as eternas críticas àquele que designam como julgador “incompetente, suspeito e parcial”, os aludidos congressistas pleiteiam a declaração de ilegalidade de todos os atos judiciais praticados por Moro e a responsabilização pessoal deste pelo desarranjo econômico causado ao país.
Antes de comentar mais essa palhaçada promovida por quem é incapaz de provar que não incorreu em corrupção e só gera tumulto para maquiar sua habitual má fé, cabe ter em mente alguns conceitos básicos ao entendimento de todo o patético da situação. A ação popular, medida judicial regida em lei própria e acolhida pela Constituição Federal (CF)[2], permite a qualquer cidadão pleitear a anulação de atos prejudiciais a entes públicos, autarquias e sociedades de economia mista. Vale assinalar que, para lançar mão desse importante mecanismo de exercício da cidadania e de fiscalização da boa gestão do patrimônio público, o autor tem de comprovar, necessariamente, a ilegalidade do ato atacado e a lesividade deste, sendo tais demonstrações requisitos indispensáveis à própria propositura da ação popular.
Quanto à suposta ilegalidade, chega a ser risível a linha de raciocínio dos autores, que não conseguiriam convencer sequer um estudante nos últimos anos do curso jurídico. De fato, nem é preciso ser graduado em Direito para conceber que uma medida com o feitio da ação popular só possa ser usada para atacar atos da administração pública, e não atos judiciais, pois estes últimos são sempre questionados pelos recursos cabíveis. Ora, tendo ingressado com toda espécie de recursos contra as decisões de Moro, os idólatras do lulopetismo, não satisfeitos com a anulação das condenações da sua divindade e com a declaração de suspeição do ex-magistrado, usam indevidamente o aparato judiciário para tentarem colar às deliberações de Curitiba o rótulo de “ilícitas”.
No entanto, o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já firmou o posicionamento de que a ação popular não pode ser empregada para questionar ato judicial[3], pois, como sustentado pelo então ministro Celso de Mello, “os atos de conteúdo jurisdicional – precisamente por não se revestirem de caráter administrativo – estão excluídos do âmbito de incidência da ação popular, porque se acham sujeitos a um sistema específico de contestação”. Assim, a ação popular em questão não poderia sequer ter sido proposta, razão pela qual sua tramitação deveria ter sido ceifada logo de início.
Em relação à pretensa lesividade ao patrimônio público, os autores, em seus longos parágrafos sobre uma imaginária perseguição urdida contra o seu ídolo maior, não conseguem explicitar em que medida as decisões de Moro teriam figurado como causa direta de prejuízos vultosos à estatal de petróleo e a toda a economia nacional. E, por maiores que fossem os seus esforços em malabarismos retóricos, os petistas jamais teriam logrado demonstrar esse vínculo de causalidade direta, pois os fenômenos econômicos, sujeitos às mais diversas oscilações no cenário nacional e, ainda, em âmbito global, apresentam um grau de complexidade que perpassa, em muito, o escopo restrito de decisões tomadas em certos processos, cujos efeitos afetam tão somente as partes em litígio.
Só mesmo mentes bem limitadas pelo reducionismo dos problemas humanos a uma abstrata luta entre classes e à suposta necessidade de planificação da economia para o alcance de uma sociedade igualitária é que poderiam atribuir a um juiz de primeira instância o poder quase mágico de “quebrar um país inteiro” …
Sintetizando as tediosas considerações jurídicas acima, entendo que o juízo do Distrito Federal, diante dessa ação popular manifestamente descabida, deveria ter indeferido a petição por inépcia, ao constatar que a conclusão dos autores não decorreu da narração dos fatos, ou seja, que a alegada lesão ao patrimônio público nem de longe poderia ter sido acarretada pelos atos de um único juiz. Se tivesse arquivado de pronto a medida com pleno amparo na nossa lei processual[4], o magistrado brasiliense teria evitado o acionamento desmotivado da máquina judiciária, com uma consequente economia de custos e direcionamento de esforços para causas relevante e cabíveis.
Contudo, o magistrado houve por bem receber a inicial e determinar a citação do ex-juiz, completando, assim, a chamada triangulação de um processo (autor – juiz – réu) descabido desde a sua propositura e que só servirá para alimentar polarizações e desviar nossos olhares dos seríssimos problemas enfrentados pelo país.
Assim como Moro no último dia 24 de maio, também o pacato Joseph K., no romance O Processo, foi acordado com uma citação judicial, tendo sido tornado réu em uma ação cujos fundamentos desconhecia. Após a surpresa inicial e o impacto da truculência dos oficiais de justiça, que chegaram a lhe surrupiar o café da manhã, K. iniciou então uma jornada exaustiva e obsessiva em busca da compreensão dos fatos que teriam motivado o seu “processo” e das maneiras mais eficazes de provar sua inocência. Daí em diante, passou a frequentar tribunais barulhentos e promíscuos, entregou-se à sujeição perante um advogado inerte, mas bem enfronhado no círculo judiciário, e compareceu a “audiências” com o pintor do tribunal, homem influente junto aos juízes vaidosos – que adoravam ser bem retratados! – e com um padre, que tanto discorreu sobre os mistérios por trás da porta da lei. Até a sua morte, “como um cão”.
Contrariamente a K., Moro bem sabe as razões para a propositura do seu processo, tanto dessa ação popular quanto de todas as aventuras jurídicas que, ao longo de anos de uma inversão de narrativas, transformaram paulatinamente o “caso Lula” em “caso Moro”. Porém, tanto Moro quanto K. se veem diante das incertezas ocasionadas pela inexistência ou pela extrema debilidade de instituições, sendo ambos privados de uma margem de previsibilidade quanto ao desfecho de seus “processos”.
Até quando Moro será arrastado, pelos malfeitores que puniu com correção, a medidas descabidas como essa ação popular, com visível desgaste para sua imagem e consequências imprevisíveis? Até quando cada um de nós aceitará a legitimidade de tribunais kafkianos, onerosos e ineficazes, e que nos lançam diariamente em um mar de insegurança acerca das soluções para os nossos litígios?
[1] https://g1.globo.com/politica/blog/julia-duailibi/post/2022/05/24/moro-acao-popular-lava-jato.ghtml
[2] Art. 5 (…) LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.
[3] https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/14826827/medida-cautelar-na-acao-originaria-ao-672-df-stf
[4] Art. 330 do Novo CPC. A petição inicial será indeferida quando: I – for inepta;
(…) § 1º Considera-se inepta a petição inicial quando:
(…) III – da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão
Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.