A figura de Abraham Lincoln não parou de crescer no imaginário coletivo desde o fatídico dia em que uma bala disparada por John Wilkes Booth acabou com sua vida. Que assim tenha sido não é menos notável, pois só a divisão do Partido Democrata lhe permitiu chegar à Casa Branca e este simples acontecimento constituiu, além disso, o sinal de partida para que o Sul optasse pela Secessão. No entanto, quando foi rodado “O Nascimento de uma Nação”, filme em que a Ku Klux Klan era exaltada e os negros eram apresentados como verdadeiras feras, Griffith, seu diretor, prestou homenagem a Lincoln como o verdadeiro pai da nação. Até hoje, muito poucos americanos argumentariam que, se Washington conseguiu a emancipação da metrópole britânica, foi Lincoln quem permitiu que a nação e a democracia sobrevivessem.
As razões pelas quais a figura de Lincoln continuou a crescer em consideração global são diversas e relevantes. A primeira é, sem dúvida, sua defesa da democracia como forma de governo que constituía a “última melhor esperança da humanidade”. A única maneira de se opor à tirania, ao despotismo e à injustiça era, em sua opinião, a preservação do sistema democrático, um sistema que em sua época só existia nos Estados Unidos e que poderia ser aniquilado como resultado de uma instituição como a escravidão e um fenômeno como o nacionalismo sulista. Se a espécie humana teria uma esperança, ela se encontrava na constituição de regimes onde os homens pudessem gozar do direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Qualquer sistema que limitasse a colheita dos frutos do esforço pessoal, das liberdades civis ou da vida caminhava, ainda que não o soubesse, para um despotismo perigoso e letal.
A segunda razão foi a prática pessoal da democracia de Lincoln. Quer a democracia o reconheça ou não, ao contrário do que muitos podem pensar, não pode sobreviver quando uma minoria subverte os mecanismos legais para favorecer seus interesses ou quando se afirma que não há princípios morais superiores que sejam inalienáveis e não possam ser violados por uma decisão política. Não era lícito ao povo decidir tornar-se escravo, nem podia ser lícito decidir submeter uma parte dos cidadãos à escravidão ou à morte. Longe de constituir apenas um mecanismo de substituição dos ocupantes do poder político, para Lincoln a democracia estava inextricavelmente ligada à defesa de certos valores morais. Assim, ele se distanciou da demagogia e do despotismo. Diante do primeiro, ele não afirmou que todos os homens são iguais, mas que todos nascem com direitos iguais; na frente do segundo insistiu na posse de direitos inalienáveis.
A terceira das razões pelas quais Lincoln continua atual é sua convicção de que a democracia não nasceu no vácuo, mas teve suas raízes na visão de mundo contida na Bíblia. Lincoln veio de uma família de dissidentes que vieram para a América em busca de liberdade religiosa. Ele assim repudiou a ideia de um estado confessional (como os Pais fundadores) e nunca teria identificado a Verdade com o credo de uma confissão específica. No entanto, ao mesmo tempo, ele estava ciente de que a Verdade existia e que a Verdade contida nas Escrituras era a base e o mais forte suporte da democracia. Foi, por exemplo, o livro de Gênesis, com sua afirmação de que todos os homens foram criados à imagem e semelhança do Deus Todo-Poderoso, aquele que legitimou a Declaração de Independência que insistia que todos os homens foram criados iguais e detentores de alguns direitos inalienáveis. Precisamente por isso, Lincoln podia apelar para princípios morais mais elevados que apontavam a escravidão como uma instituição perversa com um desaparecimento desejável (por mais que a maioria dos sulistas pensasse o contrário) e, ao mesmo tempo, podia ser magnânimo com aqueles que haviam colocado a existência da nação em perigo. Convencido de que, como Jesus ensinou, é uma prática conveniente não julgar para não ser julgado, Lincoln defendeu uma política de alcançar os derrotados. A causa do Sul havia sido errada e até perversa, mas muitos a defenderam não apenas com coragem, mas também com nobreza e, acima de tudo, com a convicção de que era justa. Por outro lado, ao lado de sua culpa maior, ninguém poderia negar que no norte alguns consentiram com a escravidão. Segundo Lincoln, Deus foi o único juiz da história e, em parte por isso, a democracia deveria buscar fechar as feridas e reintegrar os rebeldes ao invés de executá-los. Como destacaria em seu segundo discurso de posse presidencial, rejeitou uma visão a preto e branco do conflito e, ao mesmo tempo, quis agir “com malícia para com ninguém e com caridade para com todos”.
Essa convicção na base bíblica de sua visão de mundo deu às posições de Lincoln uma força e dignidade especiais, ao mesmo tempo em que dotou sua vida de uma notável capacidade de resistência em face da luta e da amargura. Sua vida familiar – sua esposa sofria de um transtorno mental e perdeu muitos filhos queridos para a doença – não foi sem tristeza e dor. O mesmo pode ser dito de sua carreira antes e depois de chegar à Casa Branca. Apesar de tudo, como no auge da batalha de Antietam Creek, ele sempre recorreu a Deus, não tanto para pedir Sua ajuda para seus propósitos pessoais, mas para pedir Sua luz para unir Seus propósitos. Nessa luta terrível que durou anos e chegou à sua consumação durante os tempos difíceis da guerra civil, Lincoln não ficou sem tensão. Sofreu com as baixas de suas tropas e com o sangue derramado de outras, com a perspectiva de devastação e com o medo de uma paz apenas para os vencedores. Ele lamentou particularmente que o bem tivesse que ser alcançado por baionetas e canhões. Foi vítima de um dilema moral que o obrigou a escolher entre a guerra até o fim para garantir a sobrevivência da democracia e o triunfo da liberdade, ou a paz somada a uma derrota que significariam o fim da primeira experiência democrática da era contemporânea. O que estava em jogo era, como ele apontou em seu discurso em Gettysburg, se o “governo do povo, pelo povo e para o povo” seria arrancado da face da terra. No entanto, ele confiava que nessa luta que era a luta do Deus que havia criado todos os homens iguais, ele também contaria com Sua ajuda.
Assim, por fim, ficaria claro que, como indicou em outra de suas falas, era uma obrigação moral de toda a raça humana levantar-se resolutamente para defender aqueles direitos inalienáveis conferidos pelo Criador. Em um Ocidente que se tornou um arquipélago de liberdades cercado por um oceano de totalitarismo, mas que também esqueceu que a História sempre cobra contas onerosas para quem decide agir contra princípios morais superiores. Essa mensagem e essa trajetória vital, não só continua a ser válida, mas também apresenta uma urgência inescapável.