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A ostensiva intervenção togada no jogo eleitoral

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Qualquer jogo é marcado, em diferentes momentos, pelo binômio certeza/incerteza. Certeza no conjunto de regras objetivas sobre a forma de seleção prévia dos participantes e o desenrolar do torneio, e incerteza na aleatoriedade do desempenho de cada jogador, uma vez iniciada a partida.

Suponha, no entanto, que uma instância de poder viesse a embaralhar as normas do jogo, desconsiderando as atuais e criando outras a seu critério exclusivo, e ainda passasse a admitir o ingresso, na competição, de times vencidos nas fases eliminatórias, ou de atletas individuais que não tivessem obtido a pontuação exigida para as provas. Nessas circunstâncias, você daria alguma credibilidade ao torneio como forma de mensuração da excelência dos concorrentes? Ainda assim, você, caro leitor e torcedor aguerrido, dedicaria seu tempo e sua energia a acompanhar as partidas e a comentar seus resultados?

Entre nós, certos poderosos condenados por crimes graves contra o erário público e, por isso mesmo, excluídos das corridas eleitorais em um passado recente, vêm sendo reinseridos no jogo político, pelo beneplácito de togados. A exemplo do ex-presidente Lula, em sua trajetória de condenado em todas as instâncias a favorito à disputa presidencial em poucas canetadas, do duplamente condenado ex-governador José Roberto Arruda[1], do ex-prefeito do Rio Marcelo Crivella[2] e de tantos outros, o sol torna a brilhar para Eduardo Cunha, beneficiado por mais uma dentre tantas decisões monocráticas que pululam país afora.

Como bem sabemos, Cunha, outrora deputado federal, presidente da Câmara dos Deputados e uma das figuras-chave no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, havia, naquele mesmo ano de 2016, perdido seu mandato por força de uma resolução proferida pela casa que meses antes presidira, em virtude de quebra de decoro parlamentar[3]. Lembramos ainda que, segundo seus pares, a infração ética do então parlamentar havia consistido em mentir durante a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Petrobras, ao afirmar não possuir contas no exterior, fato este posteriormente desmentido pelo então Procurador-Geral da República, mediante extratos de contas obtidos junto a autoridades suíças[4].

A propósito, a perda do mandato por conduta indecorosa consiste em prerrogativa exclusiva do Poder Legislativo, conforme disposto na nossa Constituição Federal[5]. De fato, inexistindo na legislação nacional o chamado recall político, ou “deseleição” de mandatários pelo eleitorado, a cassação por pares figura como um substituto canhestro ao instituto, pois sinaliza, ainda que pela via mediata dos votos dos demais parlamentares, o repúdio do eleitorado destes ao mandatário em foco.

Fechados esses breves parênteses e de volta ao assunto em discussão, tomamos conhecimento de que Cunha, inconformado diante da sua inelegibilidade decorrente da perda do mandato, bateu às portas do Judiciário apenas com vistas à recuperação de seus direitos políticos. Sem adentrar no mérito da decisão de seus pares, Cunha se restringiu a suscitar o suposto descumprimento de formalidades que, segundo ele, teriam sido indispensáveis à regularidade da cassação. Como discutido reiteradamente neste espaço, eis aí mais um político que não questiona o teor das acusações a ele imputadas, prendendo-se a formalismos característicos de chicanas judiciárias como esta.

Na primeira instância, a justiça federal de Brasília rechaçou o pedido de Cunha, sob o fundamento, a meu ver irretocável, de que a cassação de mandatos é um processo de natureza política, de atribuição exclusiva do Legislativo, onde não cabe a interferência de um julgador. Porém, Cunha, em seu firme intento de retornar ao universo do poder, recorreu da decisão e, graças a um julgado monocrático recente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), recuperou seus direitos políticos.[6]

Em estilo que mais se assemelha ao libelo de um advogado que a uma decisão judicial, o desembargador relator do caso se empenha em afirmar que caberiam ao Judiciário não só o poder como também o dever de revogar a deliberação do parlamento. Traduzindo todo o juridiquês contido nas treze páginas do despacho, o togado entendeu que a determinação dos congressistas teria implicado o cerceamento de defesa de Cunha, e ainda teria sido baseada em provas obtidas por meios ilícitos.

Quanto ao primeiro fundamento, o togado sustenta que o relator do caso na Câmara, o então deputado Marcos Rogério, teria acolhido irrestritamente a representação movida contra Cunha com base em um suposto recebimento de “vantagens indevidas”, sem especificar as condutas atribuídas ao acusado, o que teria inviabilizado sua plena defesa. Contudo, como o país inteiro acompanhou por ocasião dos fatos, as acusações que pesavam contra Cunha eram claríssimas, e consistiam no comprovado recebimento de cinco milhões de dólares oriundos de propina desviada de contratos fechados com a Petrobrás.

Plenamente ciente de todas as faltas a ele imputadas, Cunha teve a oportunidade de, por intermédio de seus advogados, apresentar sua defesa perante o Conselho de Ética da casa legislativa, não tendo havido, na época, qualquer impedimento ao uso da palavra por si mesmo, ou por seus causídicos[7]. Note-se ainda que todos os elementos probatórios colhidos na Câmara fundamentaram a ação penal movida contra Cunha junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), e, após a perda do foro privilegiado do réu, encaminhada à justiça federal de Curitiba, que acabou por condená-lo pelos crimes a ele atribuídos[8]. Assim, diante de todas as oportunidades concedidas a Cunha de demonstrar sua inocência, em consonância com a nossa legislação processual e a nossa CF, como pode o magistrado do TRF1, tantos anos depois, acolher a choraminga sobre o tal cerceamento?

No tocante ao conjunto probatório, o togado foi convencido por Cunha de que as provas invocadas contra ele teriam sido obtidas por vias ilícitas, pois decorrentes de quebra de seu sigilo bancário não autorizada pelo Judiciário. Ora, em que pese a extrema relevância do instituto do sigilo como modo de resguardar a privacidade de cada um de nós, é evidente que a chegada à vida política importa uma boa dose de relativização dessa garantia constitucional. Afinal, qualquer homem público de boa índole deve suportar a devassa de sua vida financeira diante dos olhos da coletividade que arca com seus proventos.

Outrossim, a denúncia criminal contra Cunha já foi julgada há muito, tanto na primeira instância de Curitiba quanto pelo TRF4, tendo sido mantida, em grau de recurso, a condenação do político por corrupção e lavagem de dinheiro[9]. Em outras palavras, se, lá atrás, a quebra do sigilo não havia sido autorizada, a medida veio a ser convalidada por, pelo menos, quatro togados, que empregaram as provas assim obtidas para fundamentarem seu entendimento. Daí saltar aos olhos mais uma falácia incorrida pelo magistrado brasiliense na decisão ora comentada.

Aliás, chega a impressionar tamanha preocupação do desembargador do TRF1 em acautelar os “direitos políticos do agravante (Cunha), em face da emergência de dúvidas acerca da regularidade e da legalidade do procedimento adotado na Representação”. Caberia até mesmo indagar ao togado qual o seu grau de inquietação com os demais interessados, a saber, a comunidade de eleitores e os concorrentes na disputa, que terão de suportar o ingresso, às vésperas do início do jogo, de um player de reputação denegrida por sucessivas condenações.

De toda forma, a devolução, por simples decisão monocrática, de direitos políticos a um ex-parlamentar cassado por seus pares e condenado em juízo configura uma atitude irresponsável e leviana, uma afronta à autonomia do Legislativo, além de descortinar elos promíscuos entre certos julgadores e algumas figuras notórias da política.

Em seus comentários sobre a Constituição da Inglaterra, Montesquieu, no clássico Do Espírito das Leis, reputa a separação entre os poderes como requisito indispensável ao exercício das liberdades, já que “tudo estaria perdido se o mesmo homem (…) exercesse esses três poderes, o de fazer as leis, o de executar as resoluções políticas, e o de julgar os crimes e os litígios entre partes privadas.”  Para o precursor da sociologia, se, por um lado, os tribunais não deveriam ser permanentes, por outro, os julgamentos deveriam ser “fixos” a ponto de representarem tão somente o texto exato da lei, pois, a dependermos das “opiniões específicas’ dos juízes, viveríamos em sociedade “sem sabermos precisamente os compromissos que nela assumimos.”

A busca de Montesquieu por uma certeza normativa, em grau até certo ponto utópico, mas bastante salutar em essência, contrasta com a insegurança jurídica gerada exatamente por togas que, além de legislarem, ainda introduzem na corrida eleitoral participantes previamente desqualificados. Resta saber de que modo a população reagirá, nas urnas, à oferta dos produtos eleitorais apodrecidos de tanta sujeira.

[1] https://g1.globo.com/df/distrito-federal/eleicoes/2022/noticia/2022/07/06/presidente-do-stj-restabelece-direitos-politicos-e-permite-que-ex-governador-arruda-concorra-nas-eleicoes.ghtml

[2] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/tse-suspende-inelegibilidade-de-marcelo-crivella/

[3] https://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescad/2016/resolucaodacamaradosdeputados-18-12-setembro-2016-783595-publicacaooriginal-151055-pl.html

[4] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2016/06/22/janot-afirma-no-stf-que-ha-provas-documentais-para-acusar-cunha-de-ter-contas-na-suica.htm

[5] Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: (…) II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar.

(…) § 2º Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

[6] https://www.moneyreport.com.br/wp-content/uploads/2022/07/Cunha.pdf

[7] https://exame.com/brasil/cunha-apresenta-sua-defesa-no-conselho-de-etica-acompanhe/

[8] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/03/sergio-moro-condena-eduardo-cunha-15-anos-e-quatro-meses-de-prisao.html

[9] https://www.conjur.com.br/2017-nov-21/trf-reduz-pena-eduardo-cunha-mantem-condenacao

 

Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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