(Pedro Jobim, publicado na Revista Oeste em 28 de agosto de 2022)
O descaso da sociedade com a governança do Estado, no Brasil, é uma constatação tão evidente quanto pouco discutida. Quando a monarquia brasileira caiu em função de suas próprias fraquezas, em 1889, declarou-se a República, pegando-se emprestado um apanhado de ideias das constituições da França e dos Estados Unidos para redigir-se a carta de 1891. Diferentemente dos EUA, cuja unidade emergiu pela subscrição voluntária das treze colônias já independentes à carta redigida pelos founding fathers em 1787, nossa república, de federativa, só tem o nome, pois não há diferenciação de direitos e deveres civis dos indivíduos residentes em Estados distintos, que estão todos, ainda, sujeitos a um Código Penal único. Além disso, a representação estadual proporcional à população na Câmara dos Deputados — o elemento mais fundamental da democracia representativa — também nunca foi por cá observada com rigor, tendo as distorções se agravado com o tempo, a ponto de, hoje, os três Estados mais populosos responderem por 40% da população do país, mas somente por 32% dos assentos da Câmara. O voto distrital para deputado — presente nos EUA desde sempre — é um mecanismo que aumenta a ligação entre representantes e representados, sendo fundamental para a convergência de seus interesses, especialmente no caso de repúblicas com vasta extensão territorial. No Brasil, esse mecanismo simplesmente nunca existiu, sequer mesmo tendo sido, um dia, seriamente considerado.
No contexto atual, porém, o sintoma mais aparente da descuidada organização dos Poderes constituídos e da fragilidade da federação, no Brasil, tem sido a nítida atuação política — e mais recentemente, flagrantemente ilegal — do Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte, que há anos já vinha interferindo em toda sorte de atribuições dos demais Poderes, e anulado condenações ao sabor de sua conveniência política, instaurou, em 2019, o Inquérito 4781, um veículo que, sob a desculpa inicial de investigar ameaças à segurança dos magistrados, posicionou a Corte no papel simultâneo de alegada vítima, acusador e julgador, eliminando o sistema acusatório. Repleto de toda sorte de vícios jurídicos, este inquérito inaugurou uma temporada de agressões à Constituição por parte da instituição cuja função precípua, pelo menos em tese, seria a de zelar por sua observância. O episódio desta semana, em que um ministro da Corte ordenou a Polícia Federal executar mandados de busca e apreensão na residência de diversos empresários (que não têm foro privilegiado e, assim, antes de tudo, não deveriam ser objeto de investigação da Corte), além de quebrar seus sigilos bancário, telefônico e telemático, e bloquear suas mídias sociais, é apenas o mais recente, mas também um dos mais grosseiros e arbitrários da longa sequência de violações constitucionais perpetradas pelo STF, que inclui ainda, para citar apenas uma das mais chocantes, a prisão de um parlamentar por expressar sua opinião, pela qual é, constitucionalmente, inviolável, qualquer que seja a mesma. Baseado no suposto conteúdo de conversas tão fortuitas quanto privadas em aplicativos — que não denotam, nem remotamente, risco de fato à qualquer instituição que seja — o ato é de uma violência só observada em regimes não apenas autocráticos, mas, mesmo, totalitários.
O instituto do foro privilegiado, que faz parte do ordenamento constitucional no Brasil desde o tempo de Tomé de Sousa, e sobreviveu a todas as suas sete cartas magnas, incluindo a atual, de 1988, está na origem deste problema. Num país onde a elite política tem extenso passivo criminal, ela torna-se refém do Judiciário, ficando anulado, na prática, o mecanismo de controle da Suprema Corte pelo Senado. Contudo, esse fator, se explica o silêncio e a inação da maior parte dos senadores, é insuficiente para justificar a escalada contínua das arbitrariedades. Só a desfaçatez da elite e da imprensa, que, salvo exceções, se comportam como se nada estivesse acontecendo, podem explicar a desenvoltura com que a Corte tem ampliado a escala e o escopo de sua perseguição a simpatizantes do presidente da República. Sim, as ações arbitrárias — por vezes executadas em resposta a pedidos de parlamentares de oposição, que já sequer se dão ao trabalho de encaminhá-los ao Ministério Público, a quem legalmente compete este tipo de ação, são todas voltadas a um mesmo grupo de pessoas, que têm, em comum, apenas essa preferência.
Os motivos da apatia das elites e da imprensa ante estes atos de violência são variados. Num e noutro caso, a redução de recursos governamentais, seja via verba publicitária a veículos de mídia, seja pelo menor acesso a recursos do orçamento federal ou de empresas estatais, além da diminuição do crédito direcionado subsidiado a diversos setores, parece contribuir para esta atitude. Mas não é só isso. O fato de uma pessoa como Jair Bolsonaro — que se preocupa com os problemas dos brasileiros comuns, e não com os problemas imaginários dos “progressistas”, ter a possibilidade concreta de permanecer no cargo por mais quatro anos, cobre de asco parte relevante da elite empresarial e “intelectual” do país, e quase a totalidade da imprensa.
Essas pessoas, na ânsia de fazer valer sua vontade de impedir a reeleição do presidente, não sabem, ou, mais provavelmente, fingem não saber no que consiste o Estado de Direito — a supremacia e a validade das leis para todos, inclusive os mais poderosos. Para eles, o maior dos crimes que pode ser cometido, o único pecado inafiançável, o verdadeiro atentado à “democracia”, consiste em questionar a infalibilidade do modelo de urnas eletrônicas utilizado, além do Brasil, apenas em dois outros países: Butão e Bangladesh. Afinal, a inviolabilidade destas urnas imaculadas é afiançada pelo Tribunal Superior Eleitoral — uma jabuticaba jurídica que, também, só existe no Brasil.
Não há dúvida de que, se a imprensa e as elites se comportassem de forma menos covarde, a atitude dos senadores, e também dos ministros do STF, seria outra. No entanto, o componente de cinismo neste quadro talvez seja ainda maior do que o de pusilanimidade, pois a verdade é que se trata de um conluio implícito, entre esses agentes da sociedade, com o objetivo de colocar de novo na Presidência da República um velho conhecido dos brasileiros. Condenado por diversos juízes por crimes de corrupção, em três instâncias distintas, antes de ter seus processos anulados pelo STF, por alegada incompetência de endereço da vara de primeira instância para julgar os casos (revertendo o entendimento a esse respeito, manifestado em diversas ocasiões, desde 2014, em que o tribunal havia confirmado a competência da Vara Federal de Curitiba para julgar tais processos).
A economia brasileira foi capaz de crescer a taxas elevadas, até 1980, graças à juventude de sua população, baixos estoques de capital físico e importantes vantagens comparativas — condições que, sob princípios mínimos de governança, foram suficientes para garantir aumento da renda nacional por um longo período, que se encerrou, todavia, há mais de quarenta anos. A continuada negligência de nossa classe política em relação à organização dos Poderes já não está somente, a esta altura, retardando a implementação de reformas importantes, portanto, limitando, nas últimas décadas, nossa capacidade de crescimento econômico, mas, também, em vias de poder vir a cobrar um preço muitíssimo maior de todos os brasileiros.
Diante do olhar cínico de alguns e desavisado de outros, e com ajuda de uma corte desgovernada, da imprensa, que há muito não cumpre o seu papel, e de uma elite parcialmente omissa, o país pode estar se encaminhando para uma mistura de cleptocracia e totalitarismo que não faria feio — pelo contrário — na verdadeira competição de cenários sombrios da qual atualmente participam quase todos nossos vizinhos sul-americanos. A esperança é que a diminuição do desemprego, da inflação e dos homicídios — esses sim, problemas dos brasileiros comuns que vêm se tornando menores — nos salvem desse destino, que, se é merecido para alguns de nós, não o é para a grande maioria.