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Algoritmos, o recente alvo do TSE

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À medida que se aproximam as eleições, pululam as análises em torno da elegibilidade de figuras inidôneas – ou seriam tratativas? -, as afrontas à liberdade de expressão e até algumas medidas singulares, dessas que provocariam gargalhada junto a espectadores estrangeiros, mas que, no Brasil, são levadas a sério, tanto por autoridades togadas quanto pela opinião pública. Trata-se de bizarrices, próprias a uma sociedade pouco afeita à rigidez normativa e institucional, e que encontra, nos códigos de conduta, brechas inusitadas para implementar o tradicional “jeitinho” e, por meio deste, fazer valer o que ironicamente se designa como jus sperniandi (o direito de espernear).

Na semana passada, o noticiário reportou uma bizarrice informática, que consistiu na medida proposta, junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pelos partidos apoiadores da candidatura de Lula da Silva contra a Google, por suposto favorecimento de vídeos no Youtube que seriam pró-Bolsonaro[1]. A indignação das siglas se basearia em estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)[2], segundo o qual, em mais de 50% das visitas dos pesquisadores ao Youtube, a plataforma teria privilegiado canais do grupo Jovem Pan que, no entender dos peticionários, apresentaria “evidente tendência ideológica” simpática ao atual ocupante do Planalto. Nas palavras dos lulistas, a plataforma deveria prestar ao tribunal satisfações sobre uma dita afronta ao Memorando de Entendimentos, no qual a big tech teria se comprometido, perante a corte, a “conceder acesso aos seus usuários a um contexto amplo de informações de fontes confiáveis”.

De pronto, surpreende ver uma corporação de matriz estrangeira, sem vínculos formais com qualquer dos candidatos, ser demandada perante o TSE por supostamente atuar como “cabo eleitoral” de um certo postulante. Ora, seria de se esperar que, no âmbito de sua competência, a corte se debruçasse sobre delitos que expusessem a perigo o pleito eleitoral, e que, por óbvio, somente poderiam ser de autoria de pessoas físicas. Seja na qualidade de servidores que, de algum modo, maculem o processo, seja na de cidadãos privados que tumultuem ou impeçam o exercício do sufrágio, os agentes de crimes eleitorais são necessariamente indivíduos de carne e osso, imbuídos da intenção direta de obstaculizar a corrida eleitoral. Daí não ser possível levantar qualquer suspeita, ainda que implícita, de conduta delituosa por parte da pessoa jurídica proprietária da plataforma digital em questão.

E qual seria o fundamento minimamente plausível para o acionamento da mais alta corte eleitoral contra um ente privado que não a apuração de um crime?  Uma pretensa infração ao artigo 9º do Marco Civil da Internet, que impõe ao responsável pela transmissão o dever de tratamento isonômico aos dados? No entanto, os peticionários não demonstraram que a gigante tecnológica, de posse dos mais diversos dados, os distinga por critério próprio, e, a seu arbítrio exclusivo, direcione apenas alguns aos usuários, escondendo outros sabe-se lá onde.

De fato, tudo o que as siglas conseguiram apresentar como comprovação às suas alegações foi o tal estudo da UFRJ, produzido unilateralmente, sem que a plataforma envolvida tivesse acesso ao seu teor e à sua metodologia e pudesse se manifestar a respeito. Contudo, como a polêmica informática suscitada pelos lulistas diz respeito a matéria altamente técnica e estranha à rotina profissional de juízes ou de advogados, um litígio sério sobre o tema somente poderia ser viabilizado mediante a realização de prova pericial, com a nomeação, pelo magistrado, de um perito especialista na área técnica discutida, conforme o disposto no nosso novo Código de Processo Civil[3]. Qualquer outra conduta caracteriza demandismo daqueles que se sentem verdadeiros ungidos e, com sua arrogância, dispõem da máquina judiciária para o seu deleite, na certeza de que, por mais pitorescas que sejam suas aventuras jurídicas, a cúpula togada sempre lhes dedicará atenção.

Aliás, para além do esperneio e do vitimismo tão característicos das siglas peticionárias, a medida em análise revela, mais uma vez, o desprezo das lideranças lulistas pelas leis de mercado. Por mais insuportável que tal constatação soe aos ouvidos de políticos adeptos do intervencionismo estatal, a verdade é que a Google não se importa a mínima com a eleição do candidato A ou do B, desde que os usuários consumam seus produtos e gerem receitas bilionárias aos seus cofres. Para tanto, a big tech usa meios inimagináveis de identificação das preferências de seus consumidores para, então, com base nesses perfis, seduzi-los mediante o oferecimento de conteúdos cada vez mais irresistíveis.

A propósito, vale uma breve referência ao livro 21 Lições para o Século 21, onde o historiador Yuval Harari comenta esquisitices da nossa contemporaneidade e propõe suas interpretações para tais fenômenos. No capítulo intitulado Liberdade – big data está vigiando você, o autor põe em xeque o conceito atual de livre arbítrio, enquanto manifestação individual da vontade formada por uma conjunção de forças interiores que apenas eu conheço e às quais nem mesmo a Inquisição Espanhola ou a KGB teriam acesso. Contudo, segundo Harari, a fusão entre as revoluções na biotecnologia e na ciência da computação permitirá a criação de algoritmos capazes de me monitorar dia e noite, e de compreender minhas sensações bem melhor que eu mesma.

Prosseguindo nessa linha de raciocínio, o autor sustenta que, diante de nossas dificuldades no autoconhecimento, poderemos vir a recorrer permanentemente às big techs para a realização de escolhas simples, como, por exemplo, a seleção dos nossos próximos livros ou filmes, até o ponto em que viermos a permitir a tomada de decisões relevantes pelas plataformas. Nessa toada, diz Harari: “quando estiver navegando na internet, assistindo a vídeos no YouTube ou lendo mensagens nas suas redes sociais, os algoritmos vão discretamente monitorá-lo, analisá-lo, e dizer à Coca-Cola que, se ela quiser lhe vender alguma bebida, melhor seria usar o anúncio com o sujeito sem camisa, e não o da garota sem camisa. Você nem vai saber. Mas eles saberão, e essa informação valerá bilhões[4].”

Portanto, longe do que supõem as siglas lulistas, presas a seu fundamentalismo que dispensa provas, não é uma ou outra plataforma digital que se acha a serviço de algum candidato, e sim as liberdades individuais mundo afora que podem vir a ser comprometidas pela nossa passividade diante dos comandos dos algoritmos. No entanto, esse é um questionamento cuja complexidade perpassa, em muito, os interesses eleitoreiros de um grupo ávido pelo retorno ao poder, assim como a própria mesquinhez do universo lulopetista que, na visão de seus seguidores, se destina a girar ao redor do umbigo de seu histriônico líder.

[1] https://www.metropoles.com/brasil/eleicoes-2022/lula-aciona-tse-contra-suposto-favorecimento-do-youtube-a-videos-pro-bolsonaro

[2] https://pt.scribd.com/document/594544721/SEI-TSE-2198460-Recibo-Eletronico-de-Protocolo#download&from_embed

[3] Artigos 464 a 480 do NCPC.

[4] Ed. Companhia das Letras, 2019, página 77

 

Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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