O espírito natalino, com sua alegria e suas dádivas, parece ter chegado mais cedo ao círculo dos que mandam. Após a diplomação antecipada de Lula e o discurso viril de Alexandre de Moraes, com promessas de identificação e punição de autores dos tais “atos antidemocráticos”[1] – aquele rótulo pregado à testa dos expurgados, mas que ninguém sabe definir ao certo -, a cúpula se reuniu em um convescote patrocinado por um famoso causídico[2]. Estavam todos lá: o ex-condenado não absolvido e ainda parte em várias ações, seu juiz e seu advogado, comemorando seus feitos como se fossem apenas amigos brindando no bar da esquina e não tivessem o dever institucional de isenção uns para com os outros. Se é que ainda se pode aludir a alguma sobra de institucionalidade por aqui…
Nos dias que se seguiram, em cumprimento à sua palavra de que “ainda tem muita gente para prender”, referindo-se a futuros encarceramentos como se se tratasse do abate de inimigos, ou até da conquista de territórios, Moraes expediu mandados de busca e apreensão, confiscou ativos e determinou diversas prisões, incluindo a de um vereador no Espírito Santo, sempre sob a alegação de que os alvos estariam envolvidos na organização e financiamento de “atos antidemocráticos”[3]. Não satisfeito com suas façanhas, nossa caricatura de imperador ainda ameaçou de extinção o Partido Liberal (PL), pelo simples fato de ter a sigla exercido seu direito de petição e acesso à justiça, em episódio já comentado neste espaço[4]. Vale notar que todas essas medidas constritivas foram praticadas de ofício, sem motivação jurídica plausível, contraditório ou ampla defesa, bem ao gosto do nosso autoritarismo togado.
Porém, enquanto mais de uma centena de vidas humanas foi chacoalhada pelo arbítrio, uma certa figura notória, que colocou o nosso estado do Rio de Janeiro no topo do pódio da corrupção grossa, mereceu compaixão da maioria de seus julgadores supremos. Apesar de contabilizar 23 condenações com penas que somam 430 anos por chefiar um portentoso esquema de propinas e lavagem de dinheiro, o ex-governador Sérgio Cabral retomará sua liberdade muito em breve[5]. No Brasil, onde, por decisão do STF, alguém só pode ser preso ou bem em flagrante (por ocasião do crime ou logo em seguida à prática), ou após o julgamento de todos os recursos às inúmeras instâncias (trânsito em julgado), ou em caráter preventivo, o que mantinha Cabral trancafiado era uma simples prisão preventiva, medida que só pode ser estendida no tempo em situações extremas. Sim, você e eu moramos em um país que tutela a liberdade de criminosos – só dos ricos e poderosos, por óbvio – e deixa a sociedade exposta aos riscos concretos de atividades delitivas graves.
Aliás, se escritas com alguma honestidade, as memórias do cárcere cabralino apresentariam aspectos pitorescos, e outros estarrecedores. A começar pelas regalias de que desfrutava o político durante seus seis anos como detento, incluindo sua livre circulação pelos estabelecimentos prisionais, sua sala privada de cinema para a exibição de 160 títulos, encomendas de restaurantes, celulares e até anabolizantes. Tudo para entreter sua vida de presidiário, transcorrida em seis unidades prisionais distintas[6].
Outra curiosidade, ainda mais horripilante, diz respeito à delação premiada de Cabral, cuja íntegra jamais chegou ao nosso conhecimento, mas cujos principais pontos ventilados pela mídia atiçaram nossa curiosidade. Segundo noticiado, o documento de mais de 900 páginas atingiria em cheio vários órgãos do Judiciário, mediante declarações do político de que teria atuado na “compra” de decisões do TJ/RJ, do STJ e do STF, com menção expressa até à figura de Dias Toffoli[7]. Para surpresa apenas dos muito ingênuos, a delação foi rejeitada, por maioria, pelo Supremo, inclusive com voto de Toffoli, que não se sentiu nem em pouco incomodado em decidir caso alusivo ao seu nome, e em atuar simultaneamente como julgador e interessado. Afinal, suspeição por aqui se assemelha a uma ferramenta em desuso, jogada nos fundos do armário, e da qual só se lança mão para arruinar a reputação de magistrados “menos convenientes”.
Com o passar do tempo e o enterro da delação, foi ganhando força a tese de que o prolongamento da prisão preventiva seria punição excessivamente gravosa para o famoso detento. Também, como já era de se esperar, o argumento foi vitorioso junto à 2ª Turma do STF, que acaba de soltar o político, ou melhor, colocá-lo em prisão domiciliar, tendo sido o voto do ministro Gilmar Mendes decisivo para o resultado do julgamento.
A propósito desse togado, cabe abrir um breve parêntesis sobre alguns de seus elos de amizade e/ou parentesco que, em países mais avançados, poderiam comprometer seu dever de isenção em relação ao ex-governador. Ainda temos bem viva na memória a imagem de Gilmar como padrinho de casamento da herdeira de um empresário do setor de transportes, que, segundo provas apresentadas em juízo, possuiria envolvimento direto com esquemas delitivos de Cabral[8]. Tampouco esquecemos a concessão, por Gilmar, de um habeas corpus em favor do empresário Eike Batista, também supostamente ligado ao grupo cabralino, e então defendido pelo escritório no qual a esposa do magistrado figurava como sócia[9]. Porém, deixemos para lá essas divagações sobre imparcialidade, que, entre nós, soa cada dia mais utópica, pois não alcançamos um estágio civilizacional no qual a cegueira da justiça seja condição inegociável.
Quanto ao teor da decisão em si, Gilmar sustentou basicamente que a manutenção da prisão preventiva não mais se justificaria para a garantia da ordem pública e preservação das provas relativas ao caso, e que a providência “se confunde com um odioso cumprimento antecipado da pena, ao arrepio do princípio da presunção de inocência[10]”. Confesso minha incapacidade de compreender em que medida se pode aludir a “cumprimento antecipado de pena” no tocante a alguém que foi alvo não de uma ou duas e sim de 23 condenações! Será que, no entender de Gilmar, as mais de duas dezenas de decisões judiciais proferidas por colegas seus de nada servem, sendo incapazes de justificar um encarceramento?
No tocante à alegada “presunção de inocência”, um togado supremo não poderia se dar ao luxo de assumir tal presunção no tocante a um condenado em duas instâncias que, por razões já debatidas nesse espaço, são as duas únicas esferas judiciais legítimas para o exame de provas e fatos. Ora, após a apreciação exaustiva dos elementos probatórios e da formação da convicção, por juízos distintos, que resultou nas 23 condenações, falar em inocência presumida corresponde a desmerecer, por completo, toda a análise do caso realizada pelas instâncias inferiores, evidenciando a disfuncionalidade do nosso sistema judiciário.
Outro fundamento relevante para a decisão consistiu na pretensa ausência de riscos para a sociedade, pois o grupo político de Cabral já teria deixado o poder no Rio, de modo que sua soltura não viria a implicar ameaça à integridade de provas ou coação a testemunhas. No entanto, ainda temos em mente a incrível diversidade de tentáculos dos esquemas do ex-governador, que em muito perpassavam a esfera política, englobando diversos segmentos do empresariado, do marketing esportivo[11] e tantos outros, muitos deles talvez até desconhecidos por nós. Por exemplo, ainda pairam suspeitas em torno de diretores da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que, segundo dados colhidos durante a operação policial Sofisma, resultante da delação de Cabral, teriam movimentado quase meio bilhão de reais em contratos um tanto irregulares durante seu governo[12]. No que depender de Gilmar, as suspeitas seguirão pendentes de esclarecimentos, pois foi uma de suas canetadas monocráticas que suspendeu o curso das investigações[13].
Assim, como confiar cegamente na premissa de que o habilidoso político, corrupto confesso ao afirmar às lágrimas, perante um juiz, que “apego a dinheiro é um vício”[14], não voltará a tramar com cúmplices, do passado ou do presente, a destruição de elementos probatórios, ou até o seu próprio retorno ao círculo do poder? É necessária uma ingenuidade sem tamanho para corroborar as assertivas de Gilmar.
Portanto, chegamos ao final de mais um ano com a triste certeza de que, por aqui, o crime compensa, desde que envolva esquemas bem estruturados, manipulados por poderosos e, de preferência, regados a rios de dinheiro público. Vemos a pronta sufocação das raríssimas iniciativas de desvendar os bastidores do poder não-eleito, como foi o caso da CPI da Lava-Toga, natimorta graças à união de forças políticas ditas antagônicas[15], e como acaba de ocorrer com o pedido de CPI do Judiciário, encabeçado pelo deputado Marcel van Hatten. Temos uma mídia, em boa parte, conivente com os abusos, e uma sociedade dividida entre uma minoria de privilegiados pelo Estado, uma massa desinformada e alguns setores contaminados pela abulia, na convicção de que não vale a pena lutar pelo que “jamais será modificado”.
Lamento muito, querido leitor que nos prestigiou em mais essa jornada, levar até você uma mensagem amarga, que talvez chegue às suas ceias de final de ano. Resta saber se nossas reflexões acarretarão uma indigestão ao final das refeições, ou se, pelo contrário, nutrirão ainda mais cada um de nós, para que, fortalecidos, possamos nos insurgir contra os horrores e mostrar aos nossos senhores que os verdadeiros poderosos somos “we, the people”. A decisão cabe a você, a mim, a todos nós!
[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/12/12/leia-a-integra-do-discurso-de-alexandre-de-moraes-na-cerimonia-de-diplomacao-de-lula-e-alckmin.ghtml
[2] https://revistaoeste.com/politica/lula-e-moraes-vao-a-festa-com-samba-na-casa-de-kakay/
[3] https://www.folhavitoria.com.br/politica/noticia/12/2022/saiba-quem-o-stf-mandou-prender-no-es-em-operacao-contra-atos-antidemocraticos
[4] https://www.institutoliberal.org.br/blog/entre-urnas-e-multas-onde-esta-a-ma-fe/
[5] https://www.estadao.com.br/politica/sergio-cabral-tem-23-condenacoes-que-somam-430-anos-segunda-turma-do-stf-revogou-preventiva/
[6] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/12/16/sergio-cabral-seis-anos-de-prisao-sete-transferencias-e-muitas-regalias.ghtml
[7] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/stf-decide-sobre-delacao-de-sergio-cabral/
[8] https://congressoemfoco.uol.com.br/projeto-bula/reportagem/gilmar-mendes-solta-empresario-de-cuja-filha-foi-padrinho-de-casamento/
[9] https://mpf.jusbrasil.com.br/noticias/455859244/pgr-argui-impedimento-do-ministro-gilmar-mendes-em-caso-de-eike-batista
[10] https://www.conjur.com.br/dl/voto-gilmar-stf-revoga-preventiva.pdf
[11] https://veja.abril.com.br/coluna/radar/justica-condena-cabral-e-nuzman-por-corrupcao-na-rio-2016/
[12] https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/11/5054133-fgv-pf-achou-rs-487-mi-em-movimentacoes-financeiras-de-diretores-e-familiares.html
[13] https://www.migalhas.com.br/quentes/377264/gilmar-mendes-suspende-investigacao-sobre-corrupcao-e-fraudes-na-fgv
[14] https://valor.globo.com/politica/coluna/cabral-confessa-crime-e-diz-que-apego-a-dinheiro-e-um-vicio.ghtml
[15] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/flavio-bolsonaro-pt-alianca-contra-cpi-lava-toga/
Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.