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A caneta inquisidora turbinada com pólvora

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Em outro espaço, havia comentado a barbárie das depredações recentes contra prédios públicos na capital federal e conjecturado acerca de outras consequências nefastas à ordem institucional, para além do rastro de destruição deixado pelos vândalos. Sem ter dons de pitonisa, mas apenas um olhar atento à nossa conjuntura político-jurídica, havia, na ocasião, manifestado meu receio de que a violência do último domingo fornecesse a narrativa ideal aos neo-democratas assentados no Planalto e à cúpula judiciária para justificar um endurecimento de medidas repressivas arbitrárias. Na prática, quase versões, repaginadas para o século XXI, dos tenebrosos atos institucionais[1].

De lá para cá, nem bem transcorreram dois dias e já contabilizamos o afastamento de um governador de Estado por decisão monocrática de um togado supremo[2]; a manutenção, em regime de cárcere, de mais de mil pessoas não envolvidas nos crimes de dano perpetrados na Praça dos Três Poderes[3]; e a prisão, decretada pelo ministro Alexandre de Moraes, do ex-comandante da polícia militar do Distrito Federal[4]. Durante esse relato, que mais parece um diário de guerra que uma resenha de temas judiciais, respire fundo e fortaleça seu espírito, pois de nada adiantaria fecharmos convenientemente os olhos diante de tantas e tamanhas aberrações. Elas seguiriam existindo ainda assim.

Sugiro iniciarmos pela cena que mais clama por compaixão pelo semelhante, independentemente de posições políticas, ideológicas, religiosas ou de qualquer outra ordem. Para indivíduos civilizados que somos, é inconcebível a detenção de pessoas, dentre as quais crianças e idosos, que foram removidas de um acampamento em frente a um quartel em Brasília e agora se veem submetidas a condições degradantes, como a privação de alimentos, água e higiene básica. O encarceramento coletivo de humanos, que, pela própria idade, sequer poderiam causar mal a outrem, sem contraditório, devido processo legal e demais ritos próprios aos Estados de Direito, se equipara à criação de áreas de isolamento para criaturas “indesejáveis” ao sistema, como ocorreu no holocausto, nos gulags, nos campos de “reeducação” maoístas e em todas as demais abominações de reengenharia social, varridas para o opróbrio da História.

Quanto ao comandante da polícia militar do DF, já exonerado por ocasião da decretação de sua prisão, sua eventual responsabilização, decorrente de uma suposta omissão em relação aos eventos brutais do último domingo, demandaria um farto rol de provas, ainda que indiciárias, que, devido à própria exiguidade do tempo transcorrido, sequer puderam ser produzidas. Isso sem mencionar o fato de que, em se tratando de policial militar, Moraes nem mesmo dispõe de atribuição para processá-lo e julgá-lo, em virtude da competência exclusiva da Justiça Militar para tanto, em consonância com a Súmula 78 do STJ[5].

No que diz respeito ao afastamento do governador Ibaneis, peço a você, caro leitor assombrado diante dos últimos eventos, que dedique uns poucos minutos a esmiuçar, ao meu lado, os principais pontos de mais um despacho alexandrino, redigido muito mais com o fígado que com o cérebro, e por cujas linhas chegam a escorrer gotas da mais pura cólera.

De pronto, Moraes sequer poderia ter recebido um pedido de afastamento do mandatário distrital, formulado pela Advocacia-Geral da União (AGU) e pelo senador Randolfe Rodrigues, pelas seguintes razões formais, que precedem qualquer exame do teor da petição: (a) nenhum dos dois autores possui legitimidade para apresentar um pleito dessa natureza, que só poderia, e, ainda assim, em eventos extremos, ser formulado pelo Ministério Público, em seus papeis de fiscal da lei e acusador, como no caso do ex-governador do RJ, Wilson Witzel[6]; (b) governadores de Estados e do Distrito Federal somente podem ser processados e julgados pelo STJ, não se achando um togado supremo investido de poderes para fazê-lo[7]; e (c) ao privar um governador eleito de sua investidura, embora em caráter temporário, sem indícios robustos de práticas delitivas, colhidos em investigações policiais prévias ou em processos de impeachment junto à assembleia distrital, o que Moraes fez foi desrespeitar a vontade popular e, mais uma vez, fazer prevalecer a sua própria.

No plano do mérito, chama a atenção que o magistrado, em vez de referir-se aos crimes de dano efetivamente praticados, insista em vociferar contra os tais “atos antidemocráticos”, abrindo, assim, caminho para a punição de outras pessoas que, ainda que não responsáveis pelos danos, possam vir a ser consideradas “inimigas da democracia”. Também merece nota sua afirmação quanto à suposta demonstração de “omissão e conivência de autoridades” pela simples ausência do necessário policiamento, pela autorização de ingresso de mais de 100 ônibus em Brasília e pela inércia na retirada do acampamento em frente ao quartel general do Exército no DF.

Ora, em um país conhecido, há décadas, pelos péssimos níveis de segurança pública, não chega a ser novidade a inexistência de um contingente policial suficiente para o combate eficaz à criminalidade. Quanto aos ônibus, não é crime dirigir-se até Brasília e lá promover manifestações, desde que ordeiras. Já em relação aos acampados, tampouco constitui figura delituosa a manutenção de um acampamento em ruas e avenidas, o que pode até consistir em desordem urbana, a ser enfrentada por órgãos administrativos locais, mas não por um togado, muito menos da suprema corte. Convenhamos, ainda, que alardear tais fatos como demonstração de um eventual conluio entre autoridades e delinquentes, sem dados de escuta, mensagens ou até testemunhas é o auge da extrapolação por parte de alguém que transforma fatos inerentes à rotina de um país atrasado em provas de crimes graves.

E, se Moraes se referiu a autoridades da “área de segurança e inteligência”, por que teria ele concentrado toda sua indignação contra as forças policiais locais e omitido por completo a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal e tantos outros órgãos federais do dito Sistema Único de Segurança Pública, criado em 2018, e, ainda hoje, sob a chancela direta do Ministério da Justiça e Segurança Pública? Será que, na mente do togado, os tais veículos usados para fins delitivos teriam partido de rincões e chegado ao DF sem trafegarem por rodovias federais fiscalizadas pela PRF?

A propósito, a Abin, órgão da Presidência da República que reporta diretamente ao chefe do Executivo quaisquer informações sensíveis de interesse para a segurança nacional e a ordem institucional, teria, segundo notícia amplamente veiculada pela mídia, alertado “sobre risco de violência na véspera de ataques em Brasília”[8]. Por que será que, em sua longa digressão, Moraes nem mesmo cogita uma eventual omissão relevante também por parte das autoridades federais?

Talvez uma pista resida no teor de dois parágrafos do trecho final da decisão, que peço a você licença para transcrever na íntegra:

A Democracia brasileira não irá mais suportar a ignóbil política de apaziguamento cujo fracasso foi amplamente demonstrado na tentativa de acordo do então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain com Adolf Hitler.

Os agentes públicos (atuais e anteriores) que continuarem a se portar dolosamente dessa maneira, pactuando covardemente com a quebra da Democracia e a instalação de um estado de exceção, serão responsabilizados, pois como ensinava Winston Churchill, ‘um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo esperando ser o último a ser devorado’”.

Ao criticar a postura dos ditos “apaziguadores”, que classifica como “dolosos e covardes”, recusando-se a ser um deles, o magistrado renuncia à sua própria função institucional, que consiste precisamente em apaziguar/compor conflitos, dentro das instituições e segundo as normas vigentes. Portanto, ao retirar a própria toga e negar a política, que nada mais é que a arte do diálogo e das concessões mútuas, em prol de um convívio minimamente pacífico, resta, para Moraes, um universo pós-relações políticas e diplomáticas, que é o da guerra.

Não à toa a alusão a três personagens históricos protagonistas de um período bélico do Século XX, e, em particular, à figura de Churchill, que só assume a posição de estadista em seu país no instante em que Hitler, não satisfeito com a anexação dos Sudetos (na atual República Tcheca) e violando o Pacto de Munique firmado com Chamberlain, invade a Polônia e desencadeia a sanguinolenta 2ª Guerra Mundial. Reitere-se que Churchill não chega ao poder como julgador, mas como homem de armas, após o fracasso das vias de negociação diplomática e consequente início do conflito bélico.

Como já dizia o velho Clausewitz, a guerra é a continuação da política por outros meios. E, ao longo de todas as suas decisões recentes, e, em particular, do despacho ora comentado, Moraes fechou os canais de diálogo e abriu a porteira para os tanques. Pela frente, tempos sombrios e sem perspectiva de paz.

[1] https://diariodorio.com/katia-magalhaes-terremoto-em-brasilia-a-agonia-das-liberdades/

[2] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64208905

[3] https://oantagonista.uol.com.br/brasil/instituto-de-advogados-aponta-ilegalidades-em-prisao-de-12-mil-em-ginasio-de-brasilia/

[4] https://www.metropoles.com/brasil/alexandre-de-moraes-determina-prisao-de-ex-comandante-da-pmdf

[5] Súmula 78 do STJ – Compete à Justiça Militar processar e julgar policial de corporação estadual, ainda que o delito tenha sido praticado em outra unidade federativa.

[6] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/28082020-STJ-afasta-o-governador-Witzel-do-cargo-e-prende-seis-investigados-por-irregularidades-na-Saude-do-Rio.aspx

[7] Artigo 105, I, a) da CF

[8] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/01/abin-avisou-sobre-risco-de-violencia-na-vespera-de-ataques-em-brasilia.shtml

 

Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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