Como já de hábito desde os primeiros dias do ano, tenho sido obrigada pelas circunstâncias a ocupar este espaço e a sua atenção com reflexões sobre consequências desastrosas dos atos de vandalismo do último dia 8 de janeiro. Barbárie, repita-se à exaustão, bastante conveniente para dar holofotes e discurso vitimista ao ex-presidiário assentado no Planalto, mas cuja articulação a tropa lulopetista se recusa a investigar, envidando todo o tipo de “empenho” para barrar a instauração de uma comissão de inquérito que já dispõe do número necessário de assinaturas para iniciar seus trabalhos[1].
O mais recente alvo dos vassalos da presidência foi o governador de Minas Romeu Zema, interpelado, perante o STJ, pelos Srs. Reginaldo Lázaro e José Carlos Becker para a prestação de esclarecimentos sobre frases por ele proferidas acerca dos eventos na Praça dos Três Poderes, e que, no entender dos autores da medida, poderiam ser tidas como caluniosas. Após o exame do pedido, o ministro Humberto Martins, em vez de cumprir seu dever de ofício e conduzir o processo, inovou os ritos e, mediante mais uma de tantas decisões monocráticas que tornam qualquer atuação processual entre nós uma mera aposta em um cassino, houve por bem remeter o caso ao STF, por considerá-lo relacionado ao inquérito em curso junto à suprema corte “para apurar responsabilidades dos autores intelectuais dos atos de vandalismo[2]”. Aos olhos do leigo, pode até parecer mais uma etapa da intrincada rotina judiciária; aos de quem tenha familiaridade mínima com o Direito, uma tamanha aberração sob tantos aspectos que vou precisar de uns poucos minutos de sua paciência, caro leitor, para dissecar essa ferida aberta, sem incorrer na chatice dos tecnicismos.
Em primeiro lugar, tratando-se de uma pretensa lesão à honra, nossa lei penal é clara ao estipular que apenas o ofendido, e ninguém além dele, dispõe da prerrogativa de lançar mão da medida cabível, ou, em juridiquês, de oferecer queixa[3]. Portanto, se Zema é acusado de atentar contra a imagem da cúpula do executivo federal, a suposta ofensa somente poderia ser questionada pelos membros do alto escalão, mais precisamente pelo presidente da República e/ou por seu ministro da Justiça, ao qual se reportam órgãos-chave da segurança pública nacional, tais como a polícia federal e a polícia rodoviária federal.
No entanto, o que se observou foi o ajuizamento de uma medida por pessoas estranhas ao núcleo de comando do Executivo e que atuam apenas como fantoches, bravateando no lugar daqueles que sequer possuem a coragem de “mostrarem a cara” diante de seu suposto caluniador. Ora, a simples identificação dos autores da ação e a constatação de que estes pleiteiam indevidamente eventual direito alheio em seu próprio nome deveriam ter levado o ministro relator a determinar o imediato arquivamento dessa aventura jurídica.
De toda forma, ainda que o togado não tivesse encerrado o caso de pronto e tivesse decidido conferir benevolamente aos autores, apesar da grave irregularidade apontada acima, uma chance de satisfazerem sua pretensão, ainda assim jamais poderia ter o ministro dado ao assunto o desfecho que todos nós testemunhamos. Uma interpelação consiste em medida preparatória (cautelar), destinada ao mero esclarecimento de comentários ambíguos, com vistas à fixação da real intenção do interpelado de caluniar o interpelante[4], e à coleta de provas efetivas para a propositura de uma futura queixa por ofensa à honra. Na dinâmica desse procedimento específico, não cabe ao juiz qualquer apreciação da questão de fundo, ou seja, nem do teor das afirmações controversas, nem dos eventuais esclarecimentos prestados pelo interpelado. Pelo contrário, no âmbito de uma interpelação, a margem estreitíssima de atuação do magistrado se resume a: (i) receber a petição, ou rejeitá-la de imediato, se esta não preencher os requisitos formais exigidos, como, aliás, foi o caso, pelas razões já mencionadas; (ii) ordenar a citação do interpelado para que este se manifeste; e (iii) “fornecida a explicação, ou, no caso de recusa, certificada esta nos autos, o juiz simplesmente faz com que os autos sejam entregues ao requerente”, pois “não julga a recusa ou a natureza das explicações”, conforme posicionamento pacífico do próprio STJ[5].
Porém, no assunto em discussão, o togado, extrapolando suas funções, afirmou que as frases de Zema possuiriam conexão direta com os eventos de janeiro, conclusão esta que, por óbvio, só foi viabilizada pelo exame das expressões utilizadas pelo mandatário interpelado. Após tão aprofundada análise, chegou o magistrado a abrir mão da atribuição a ele conferida pela Constituição[6] em caráter exclusivo, absoluto e irrenunciável, transferindo ao STF a incumbência de julgar conduta de um governador de estado. Tamanha deve ser sua confiança em supremos togados que anularam uma delicada operação policial contra seu filho[7], que o aludido ministro, em decisão singular, se sentiu à vontade para desconsiderar norma constitucional sobre competência em razão da pessoa e do cargo por ela ocupado (à frente do governo mineiro), e criar mais uma “jaboticaba”, algo que poderia ser definido como “competência em razão dos eventos investigados nos autos do Inquérito n. 4.921 (sobre os atos de 08.01).”
Na história recente da Nicarágua, temos visto o encarceramento e a condenação, por verdadeiros tribunais de exceção, servis ao Grande Chefe, de lideranças oposicionistas em virtude da simples manifestação de opiniões contrárias ao governo da situação e da organização de protestos pacíficos e ordeiros[8]. Nos domínios de Ortega, a expressão de ideias tidas como inconvenientes, assim como o próprio surgimento de forças políticas capazes de derrotarem, nas urnas, o imperador local, são enxergados como atos de “conspiração para minar a integridade nacional” e “propagação de notícias falsas“. Assim, tem o tiranete eliminado qualquer figura potencialmente ameaçadora ao seu reinado vitalício, sempre sob a narrativa de que seus alvos não teriam sido condenados por serem seus oponentes políticos, mas sim por serem delinquentes – e, claro, tudo sob o pretenso manto da legalidade e do Estado de Direito, ainda que se trate de uma institucionalidade sui generis, à moda sandinista.
Mas por que mesmo estou aqui, deitando prosa sobre uma distante Republiqueta da América Central, logo em um momento como o atual, em que, segundo as vozes hegemônicas, a democracia no Brasil voltou, e para sempre? Talvez escreva estas linhas em estado próximo a um delírio febril, no tórrido calor estival do Rio. Ou talvez nem tanto.
[1] https://revistaoeste.com/no-ponto/governo-intensifica-pressao-para-barrar-cpmi-do-8-de-janeiro/
[2] https://www.conjur.com.br/2023-mar-07/stj-manda-stf-zema-comentarios-81
[3] Art. 145 do Código Penal – Nos crimes previstos neste Capítulo somente se procede mediante queixa (…)
[4] Art. 144 do Código Penal – Se, de referências, alusões ou frases, se infere calúnia, difamação ou injúria, quem se julga ofendido pode pedir explicações em juízo. Aquele que se recusa a dá-las ou, a critério do juiz, não as dá satisfatórias, responde pela ofensa.
[5] https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-es/762535696/inteiro-teor-762535705
[6] Art. 105 da CF – Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I – processar e julgar, originariamente: a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal.
[7] https://oantagonista.uol.com.br/brasil/stf-anula-operacao-contra-filhos-de-ministros-do-stj-e-do-tcu/
[8] https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2022/07/lider-da-oposicao-na-nicaragua-e-condenado-a-10-anos-de-prisao.ghtml
Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.