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Os togados volúveis e sua lira mágica

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Bem posso imaginar, caro leitor, a sua expressão facial a cada linha inicial da nossa coluna, e acredito até que, logo no primeiro clique, você deixe escapar um suspiro de desencorajamento, exclamando, de si para consigo, algo do tipo “ah, lá vem bomba desse Judiciário que manda e desmanda”. E vem mesmo! Contudo, parafraseando o velho ditado, de nada serve matar, ou fechar o texto desta mensageira que ora escreve, pois a notícia desastrosa seguirá lá, intocada na realidade objetiva, e, se você virar as costas a ela, será apenas um cidadão carente de informações qualificadas, mas, ainda assim, um pagador de impostos escorchantes.

Há pouquíssimo tempo, a 1ª Turma do STF autorizou o julgamento de um recurso do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP/AL), contra decisão que o havia tornado réu por corrupção passiva em virtude do recebimento de propina, como apontado pelo doleiro Alberto Youssef, em colaboração premiada durante a Operação Lava-Jato[1]. Coincidência ou não, ainda pairava, na semana passada, um laivo de dúvida sobre o posicionamento da mesa diretora da casa acerca da cassação arbitrária do deputado Deltan Dallagnol, debatida aqui[2].

No momento em que digito essas linhas, acaba de ser rejeitada, por unanimidade, a denúncia contra Lira, em uma pressa repentina que destoa da proverbial morosidade dos nossos togados, e até da demora na apreciação desse caso. De fato, a ação penal oferecida pela PGR contra o parlamentar havia sido recebida nos idos de 2019, e a análise do recurso contra a decisão de recebimento, iniciada em 2020. Tanto tempo depois, somente em 2023, a defesa de Lira veio a apresentar um argumento novo – baseado no “pacote anticrime” (Lei 13.964/19), em vigor desde 23 de janeiro de 2020! -, segundo o qual a denúncia não poderia ser fundamentada apenas nas palavras de um delator. Por mais incrível que pareça, a PGR veio a manifestar inteira concordância com as alegações do deputado[3]. Onde estavam os advogados e o próprio Ministério Público nos últimos três anos, que não souberam sacar do bolso qualquer referência à nova legislação em proveito de Lira? Certamente, no aguardo de uma ocasião “propícia” para tanto…

E a oportunidade chegou, após anos de progressivo desgaste na imagem do lavajatismo e de fortalecimento do autoritarismo togado, que redundaram na eleição de um condenado não-absolvido e na atual inversão de valores éticos e jurídicos. Ora, só em um ambiente de “casa da mão-joana”, para usar as palavras de Dallagnol em campanha, é que se cogita da aplicação de uma lei posterior para reger situação pretérita já constituída, qual seja: o recebimento de uma denúncia, que não representa mera formalidade, senão um primeiro juízo favorável ao cabimento das acusações.

Para simplificar o juridiquês, a mesma corte suprema do país que, lá atrás, havia comunicado à sociedade e às partes sua deliberação de transformar o então investigado Lira em réu, vem, tempos depois, reportar uma decisão em sentido oposto, sem qualquer fato novo capaz de justificar a extraordinária reviravolta. Como se não bastassem tantas irregularidades, vale frisar que o julgamento contou com a participação crucial do ministro André Mendonça, que insistiu em votar, embora não pudesse fazê-lo, na qualidade de sucessor de um magistrado aposentado (Marco Aurélio Mello) cujo pronunciamento sobre o caso já havia sido manifestado. Mas, o que mesmo pode ser defeso a um togado que, ao lado de seus pares supremos, efetivamente ditam as regras do jogo entre nós?

Só nos resta o direito de crítica à insegurança jurídica dos nossos tempos, onde não podemos saber, ao certo, se alguém figura ou não como réu em virtude de determinados fatos, e onde a atribuição de tal condição, sobretudo em processos em curso perante a cúpula judiciária, costuma oscilar ao sabor das conveniências. Crítica, aliás, que, nos dias de hoje, se torna uma atividade cada vez mais perigosa.

No país das coincidências, poucas horas após a proclamação do julgamento debatido acima, do outro lado da Praça dos Três Poderes, a mesa diretora da Câmara ratificava, na íntegra, as ilegalidades praticadas contra Dallagnol pelo TSE, colocando um ponto final no trâmite esdrúxulo que havia cassado um mandato popular sem fundamentação válida, e caçado o outrora acusador de quadrilheiros do colarinho branco, incluindo-se aí nosso atual primeiro mandatário[4]. Líderes parlamentares reduzidos ao papel de vassalos de outro poder e tornados, na prática, burocratas carimbadores de decisões alheias.

Como justificativa à sua deliberação tomada a portas fechadas, a casa legislativa divulgou nota, segundo a qual “não cabe à Câmara, ou a qualquer de seus órgãos, discutir o mérito da decisão da Justiça Eleitoral. Não se trata de hipótese em que a Câmara esteja cassando mandato parlamentar, mas exclusivamente declarando a perda do mandato, conforme já decidido pela Justiça Eleitoral.”[5] Muito curiosa a interpretação dada por nossos legisladores ao artigo 55 da CF acerca da perda de mandato parlamentar, acrescentando-lhe detalhes bem convenientes à sua própria pusilanimidade.

Sim, o referido dispositivo constitucional prevê diferenças entre as hipóteses de cassação por força de condenação criminal e em virtude de determinação da justiça eleitoral (como foi o caso de Dallagnol). Na primeira situação, atrela a perda do mandato à deliberação da maioria absoluta, ou seja, de três quintos da Câmara, e, na segunda, à declaração da mesa diretora; porém, em ambos os casos, assegura a ampla defesa ao político em questão.

Portanto, se todo o conteúdo decisório reservado ao parlamento, em situações como a de Dallagnol, se resumisse à aposição de um “selo de certificação” ao julgamento das togas, que sentido faria a menção ao direito de defesa em trâmite onde sequer houvesse processo? Aliás, se assim fosse, por que o legislador constituinte teria imposto a participação da mesa diretora na declaração de perda do mandato? Apenas para ocupar o tempo dos congressistas e justificar seus elevados rendimentos? Assim como o TSE fabricou hipóteses de inelegibilidade, da mesma forma, a Câmara acabou de criar uma pseudo-impossibilidade de exame do mérito do caso, que jamais lhe foi vedado pela letra fria da Constituição. Aceitou ajoelhar-se diante de magistrados, chegando a anuir a um “fechamento branco” de sua própria instituição, pois convertida em mera linha auxiliar do Judiciário.

Na mesma melodia entoada por togados, onde estes brilham como solistas absolutos, nos sentimos aturdidos diante das constantes incertezas geradas por quem deveria guardar nossa Lei Maior e da covardia daqueles eleitos por nós, mas incapazes de cumprirem seu dever institucional de colocação de freios aos abusos do poder vizinho. Invocando o épico maior em nosso idioma, Os Lusíadas:

Da feia tirania e de aspereza

Fazem direito e vã severidade;

Leis em favor do Rei se estabelecem,

As em favor do povo só perecem.”

De onde esperamos justiça, só temos recebido o mais puro autoritarismo travestido de legitimidade pelo manto das togas. De onde esperamos leis que assegurem nossas liberdades individuais, inclusive a de votar e ser votado, só temos recebido ditames favoráveis aos nossos imperadores togados e a seus aliados políticos, em detrimento de uma sociedade civil enxergada pelo “andar de cima” como mera fonte de custeio das elevadas contas dos nossos senhores.

Se coube ao genial Camões cantar a grandeza do povo luso em tempos de outrora, sem omitir-se quanto aos vícios inerentes a qualquer sociedade humana, a mim, modesta comentarista privada das graças das Musas, restou tentar escancarar os intestinos do poder não-eleito. E, com sorte, contribuir no plantio das sementes da mudança.

[1] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/toffoli-libera-para-julgamento-recurso-de-lira-contra-denuncia-por-corrupcao/

[2] https://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/a-republica-de-curitiba-bombardeada-pelo-exercito-togado/

[3] https://www.migalhas.com.br/quentes/387859/1-turma-do-stf-rejeita-denuncia-contra-lira-por-corrupcao-passiva

[4] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/mesa-diretora-da-camara-dos-deputados-confirma-cassacao-do-mandato-de-deltan-dallagnol/

[5] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/mesa-diretora-da-camara-dos-deputados-confirma-cassacao-do-mandato-de-deltan-dallagnol/

 

Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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