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A República do parentesco togado

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No início dos anos 60, Leonel Brizola lançou o slogan “cunhado não é parente”, como estratégia de sua pré-campanha ao que teriam sido as eleições presidenciais de 65. Embora o caudilho fosse casado com Neusa Goulart, irmã do então presidente Jango, e as normas vigentes na época impedissem a candidatura de parentes do ocupante da cadeira presidencial, o artificio retórico brizolista consistiu na negação explícita de um vínculo, em prol da sede de poder. Afinal, nós, humanos, únicos dentre todas as espécies a darmos sentido a fatos puramente objetivos, somos capazes de ressignificar elos sanguíneos ou matrimoniais e de criar as narrativas mais mirabolantes, desde que premidos pelo imperativo do desejo.

Em medida proposta na surdina, e nada ventilada pela grande mídia, a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) pleiteou junto ao STF a declaração de inconstitucionalidade de dispositivo do Código de Processo Civil em vigor, que impede togados de apreciarem causas cujas partes sejam clientes de escritórios de advocacia de seus parentes. Pedido que, por si só, já deveria estarrecer e revoltar qualquer sociedade de indivíduos livres, pois escancara a ânsia de agentes públicos de ampliarem a sua esfera de poder, e de abarcarem, com suas togas, pessoas defendidas por bancas comandadas pelo círculo íntimo daqueles que deveriam representar o braço julgador e imparcial do estado.

Após o processamento célere de ação que sequer mereceria ter ocupado as horas caríssimas da nossa cúpula judiciária, os supremos juízes, em plenário virtual bem distante da “curiosidade” popular, acabam de formar maioria para acolher o pleito, e afastar do nosso ordenamento uma hipótese tão “inconveniente” de impedimento. Quanto aos fundamentos invocados pelos togados, pouparei você, caro leitor, de todo o leque de falácias, e me restringirei à elucidativa fala do Ministro Gilmar Mendes, segundo o qual a norma em discussão seria “cláusula aberta, excessivamente abrangente”, e ao discurso do recém-chegado Ministro Zanin, no sentido de que seria “praticamente impossível para o magistrado conhecer a carteira de clientes do escritório no qual atua seu parente”, e de que “não há nenhuma obrigação de o advogado informar seu parente magistrado sobre sua carteira de clientes”.

Ora, supremos togados, os senhores sabem que, antes mesmo das folhas, as capas dos processos já exibem, em letras garrafais, a identidade das partes e de seus procuradores (advogados). E, como também é do conhecimento dos doutos magistrados após vasta vivência forense, consta, em destaque nos autos, a identificação dos primeiros causídicos mencionados na procuração conferida pelos clientes, e que são, de hábito, os sócios principais das bancas, cujos nomes encabeçam o rol dos papeis timbrados destes. Portanto, se, mesmo após a leitura da capa, o exame da regularidade da procuração (tarefa obrigatória para o juízo), e a vista d’olhos pelo timbre do escritório, o togado em questão for incapaz de reconhecer o nome de seus parentes e dos colegas destes, com os quais convive amiúde em celebrações judiciárias, festas e demais ocasiões sociais, aí não estaremos mesmo diante de uma situação de impedimento, mas de insanidade, que, de todo o modo, já seria razão para lá de suficiente para afastar o magistrado de suas funções!

E nem se poderia alegar, como fizeram os adeptos da “tese jurídica” vitoriosa no STF, que a parcialidade nos tribunais já seria evitada pelo dispositivo (jamais questionado e em pleno vigor) impeditivo da atuação de magistrados em ações nas quais seus parentes figurem diretamente como advogados. Embora necessária, a norma não é suficiente para coibir os conluios passíveis de serem planejados por mentes pouco afeitas à ética. Muito menos em um país como o nosso, onde padecemos de corrupção grossa endêmica, levada a cabo inclusive pelas vias judiciais.

De fato, é tão indispensável manter o togado afastado do julgamento de medidas patrocinadas por seus parentes (pessoas físicas), quanto o é impedi-lo de apreciar causas capitaneadas pelos escritórios destes. Não à toa a atual lei processual inseriu as duas situações no rol das hipóteses de impedimento, pois, assim como o familiar causídico, o escritório integrado (e geralmente comandado!) por este também é passível de promover tráfico de influência junto ao “seu” magistrado. Porém, os supremos juízes acabam de excluir a possibilidade de questionamento da forma um pouco mais elaborada de promiscuidade, ou seja, por meio de escritórios, transmitindo à sociedade a mensagem implícita de que conluios podem ser tolerados, “desde que sob o manto de uma pessoa jurídica, distinta da de seus sócios”.

Curiosamente, a decisão beneficia seus prolatores, permitindo-lhes julgar, sem qualquer receio de impedimento, ações patrocinadas por escritórios de familiares próximos. Desse modo, Zanin poderá decidir os pelo menos 14 processos do escritório de sua esposa junto à corte, Gilmar se sentirá cada dia mais tranquilo em relação às ações da conhecida banca da cônjuge, Moraes no que se refere aos processos da sua, assim como Toffoli. Ademais, como o julgado não se restringe aos juízes supremos, outros togados desfrutarão da mesma “prerrogativa”. Assim será com o Ministro Francisco Falcão (STF), nas causas milionárias patrocinadas pela banca de seu jovem e prodigioso rebento, e com todos os magistrados por todo o país, nas mais diversas instâncias e regiões, cujos parentes talentosos tiverem alçado posições em escritórios privados.

Se, até bem pouco tempo, a parte prejudicada podia lançar mão de uma louvável norma jurídica para se insurgir contra conchavos e, então, buscar restabelecer o equilíbrio na relação processual, a partir do julgado em discussão, teremos todos de contemplar situações visivelmente iníquas. Graças ao silêncio conivente da OAB, de costas viradas para a imensa maioria de seus inscritos, simples “mortais desaparentados” de togados, e do Parlamento, inerte diante da aniquilação imoral de norma por ele discutida e aprovada, observaremos um abismo cada vez mais profundo, no universo advocatício, entre os “parentes”, seja por sangue ou matrimônio, e todos os demais. E, nesse caldo apimentado pela proliferação das decisões monocráticas e pelas “inovações” togadas, bem apartadas da previsibilidade dos dispositivos jurídicos, abundarão as certezas apriorísticas sobre o desfecho de litígios. Em particular, os que envolverem interesses mais vultosos e pessoas com maior voz de mando, é claro.

Os princípios do mundo livre, tais como separação de poderes, impessoalidade, império da lei e ascensão profissional graças aos méritos pessoais, minguam entre nós. Em uma sociedade submissa aos ditames inquestionáveis do poder não-eleito, advogados tenderão a ser mais admirados pela proximidade de seu parentesco com togados, e, de preferência, com os de cúpula. Nesse cenário, os clãs se sentirão cada vez mais à vontade para protegerem os “seus”, e os estranhos que, porventura, litigarem contra membros dos feudos parentais poderão vivenciar a experiência do ingresso no inferno dantesco, onde “ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança”. Ainda temos Estado de Direito por aqui?

 

Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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