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A democracia no Brasil de 2023 tem dois lados

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(J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 3 de setembro de 2023)

 

Em nenhum momento, ao longo dos 500 anos de história do Brasil, a autoridade pública, os tribunais de justiça e a polícia falaram tanto de democracia como hoje. Mais que isso: montaram uma espécie de “Comissariado Nacional de Repressão aos Atos Antidemocráticos”, que deu a si próprio a autorização para violar as leis quando julga que o “estado de direito” está ameaçado por alguém ou por algum tipo de ideia. A manifestação suprema desta cruzada, que se propõe a nos salvar da “extrema direita”, é o inquérito perpétuo que o STF mantém aberto há mais de quatro anos contra os “atos antidemocráticos”. É um elixir universal. Serve para quem fala mal das urnas do TSE, tem atitudes “golpistas” ou participou da arruaça do 8 de janeiro – que a presidente do STF considerou igual ao bombardeio de Pearl Harbor, que matou 2.400 pessoas e levou os Estados Unidos à uma guerra de quatro anos contra o Japão e a Alemanha nazista.

O inquérito sem fim também serve para perseguir quem se enrolou com atestados de vacina, falou mal dos ministros do Supremo, entrou no WhatsApp para conversar de política – enfim, vai na base do “pega um, pega geral”. Quer dizer: não é tão geral assim. Nunca pegou até hoje um único antidemocrata de “esquerda”, ou admirador do presidente Lula – e muitíssimo menos o próprio Lula. Bem que poderia pegar, se o comissariado de salvação da democracia, que também considera as “fake news” como crime de lesa-pátria, tivesse alguma preocupação em ser imparcial. Mas, aqui, pau que bate em Chico nunca bate em Francisco, dependendo de quem seja o Francisco. Dizer que as urnas do TSE são sujeitas a fraude, por exemplo, é infração gravíssima – o ex-presidente da República, inclusive, foi declarado “inelegível” por oito anos porque falou isso numa palestra a embaixadores estrangeiros. Lula, porém, pode dizer que uma decisão legítima do Congresso Nacional, o impeachment de Dilma Rousseff por fraude contábil, foi um “golpe de Estado”. Pode, até mesmo, exigir uma espécie de certificado oficial atestando que a sua sucessora é inocente de todas as acusações e deve ser reconhecida como mártir das causas populares.

Dilma foi deposta porque 367 deputados federais votaram a favor do impeachment, e só 137 contra. No Senado foi ainda pior: 55 a favor, 22 contra. O que poderia haver de mais claro como demonstração da vontade da população brasileira, que só o Congresso tem direito de representar? Além disso, o STF supervisionou cada decisão do processo, e aprovou tudo. É o chamado ato jurídico perfeito – mas pode ser chamado de “golpe”. No Brasil-2023 só é antidemocrático quem está do outro lado.

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