Trocando judeus por gado: a contabilidade do horror
La Razón
Graças à literatura e aos historiadores, a verdade de alguns acontecimentos que foram escondidos ou tiveram pouca difusão está emergindo, especialmente em países dos quais pouco se sabe, devido à sua escassa importância internacional ou carregados de clichês e preconceitos. É o caso da Romênia, cuja formação literária surgiu em 2009 pelo Prêmio Nobel concedido a Herta Müller. Esta, filha de um soldado da Segunda Guerra Mundial e de uma mãe deportada para um campo de trabalhos forçados na União Soviética, teve de suportar o regime comunista de Nicolae Ceausescu, que atacou desde o seu primeiro livro, proibido e censurado, até que, farta do assédio da polícia secreta, decidiu exilar-se.
No ano passado veio Vidas Provisionales, de Gabriela Adamesteanu, que conhece a diabólica rede comunista e narra como a existência mais privada foi submetida à vigilância de agências governamentais que realizavam um controle kafkiano da população. Até mesmo seu melhor amigo poderia jogá-lo na Securitate. “Ninguém podia sair do país em plena Guerra Fria. O povo vivia prisioneiro”, diz Sonia Devillers (1975) em Les Exportés, que acaba de ser publicado como testemunho de uma atrocidade que permaneceu em arquivos secretos até 25 anos após a queda do Muro.
Naquela época, os arquivos de inteligência romenos relacionados ao tráfico de pessoas eram desclassificados: judeus que trocavam por animais ou dinheiro como escravos do século XIX. Nessas listas, aparecia “quem foi vendido e por quanto. O preço de cada cidadão judeu estava por escrito; primeiro se transformou em gado e depois em dólar”, diz Devillers, jornalista francesa e filha de imigrantes romenos, que investigou como sua mãe e seus avós deixaram a Romênia rumo a Paris. Esses milhares eram os “exportados”, que o Estado perseguira e que podiam pagar pela emigração para o Ocidente.
É por isso que Devillers diz no início que seus parentes não fugiram, mas os deixaram partir, pagando uma fortuna por isso. Eles eram Harry e Gabriela Deleanu, que pisaram na França em 1961 com suas duas filhas e uma avó. Um dos chefes da Securitate confessou nos anos 80 que “a Romênia vendia os seus judeus há décadas. Começara por trocá-los por animais comestíveis: vitelos, vacas, galinhas, ovelhas e, sobretudo, porcos. Com o tempo, ele os trocou por dólares”, a ponto de Ceausescu dizer certa vez: “Judeus e petróleo são nossos melhores produtos de exportação”.
Até abordar aquela fase sombria da ditadura romena, Devillers está contando a vida de seus avós, completamente fascinante, porque serve para fazer um passeio pela Bucareste dourada, em que uma Gabriela culta, poliglota e amante da música se casa com Harry, um nativo do Texas, até que os pogroms e a Segunda Guerra Mundial destroem tudo. Já no final dos anos trinta, o avanço dos fascistas se torna retumbante, como contou Sebastian, fonte constante de Devillers, e que o antissemitismo gera massacres atrozes no país. Harry estava prestes a ser assassinado na rua e muitos acabaram “nos matadouros de Bucareste com uma bala na parte de trás da cabeça. Um punhado de pessoas moribundas, incluindo uma menina, foram penduradas pelo pescoço”.
Então, a autora percebe que, antes que essas coisas acontecessem, seu avô foi resgatado de um matadouro onde seria esquartejado como um animal. Era o tempo em que os comunistas confiscavam as propriedades dos empresários, intimidavam seus adversários políticos, assumiam o controle da imprensa e faziam prisões aleatórias. Burgueses, maçons, judeus não comunistas, sindicalistas, intelectuais ou artistas que se mostraram independentes… Todos eram suspeitos e seriam censurados ou perseguidos, vítimas de expurgos e julgamentos. É nesse ambiente caótico e perigoso que entraria a figura de um comerciante inglês, “um amante capitalista do livre comércio”, que poderia facilitar a liberdade em troca de doze mil dólares, que os avós do jornalista levaram uma vida inteira para devolver.
Esse dinheiro que seria ganho dessa forma “tinha sido usado para comprar porcos. Batalhões de suínos, granjas inteiras de suínos. Mas não são quaisquer porcos, não, porcos de competição, mais valiosos, mais produtivos, até mais rentáveis do que os cidadãos que deixaram o país. Aqueles cidadãos que, desde os primórdios dos tempos, se beneficiaram muito e pouco contribuíram: os judeus”. O fato é que o país, além de ter que alimentar seus cidadãos, também pretendia exportar para trazer moeda estrangeira, de modo que conseguir dinheiro se tornou uma obsessão do regime. O problema, diz Devillers, é que não havia muitos produtos para vender, exceto as próprias pessoas.
Assim, o acordo era tão simples quanto monstruoso: por um lado, a Romênia tinha inúmeros judeus ansiosos para deixar a Romênia, por outro, precisava introduzir gado estrangeiro no território. Um escambo que foi desenvolvido para alguns saírem e entrarem: judeus em troca de porcos, bois, galinhas, ovelhas e perus, o que significava colocar um preço na cabeça de cada judeu que fosse autorizado a cruzar a fronteira.