(J.R. Guzzo, publicado no jornal Gazeta do Povo em 21 de outubro de 2023)
O ministro Luís Roberto Barroso, dando sequência ao seu programa de comícios através do mundo, apresentou ao público, desta vez em Paris, suas recomendações para que o Brasil e o cidadão brasileiro se tornem melhores do que são. O que o presidente do Supremo Tribunal Federal, de quem a lei exige imparcialidade em todas as circunstâncias, estava fazendo numa reunião estritamente política? Não é culpa dele, informou mais uma vez.
A Constituição decidiu cuidar de todo o tipo de assunto, do regime de impostos ao direito ao lazer e o STF, coitado, é obrigado a julgar tudo. A solução mais óbvia para isso, caso os ministros quisessem mesmo cuidar só de assuntos constitucionais, seria não aceitar mais o julgamento sobre imposto sindical, terras indígenas ou regras para o meio ambiente – e toda a enxurrada de ações que entram ali com a facilidade com que se entra num campo de futebol. Mas Barroso e seus colegas, no mundo das realidades, querem exatamente o contrário. Querem uma “agenda” para o Brasil. Querem promover o “progresso”. Querem “empurrar a história”. Querem que a sociedade brasileira seja o resultado de suas decisões.
Ninguém pediu nada disso a eles, e nem a lei os autoriza a agirem como estão agindo. Por mais que a Constituição seja um angu onde entra tudo, está claro que política é uma coisa e justiça é outra – e todas as “pautas” do STF, como se diz, são política pura. A verdade é que o STF deu a si próprio poderes que a lei jamais lhe outorgou e criou uma coisa única no mundo democrático: um regime de Dois Poderes subalternos e Um Poder que manda em ambos, todas as vezes em que determina que a história não está sendo empurrada na direção desejada pelos onze ministros, nem com a rapidez que eles estimam ser necessária.
“Agenda?” O STF não pode ter agenda. Não tem de achar se isso é “melhor”, ou “pior”, do que aquilo. Tem de exercer as funções de Corte Superior de Justiça, como em todas as democracias sérias do mundo – e só essas funções. Dizer se o país tem de ser assim ou assado é tarefa do Poder Legislativo, exclusivamente, e não pode ser terceirizada para ninguém.
Foi um brutal chamado à realidade, no mesmo momento em que Barroso agia como chefe de partido político, que ali mesmo em Paris, não longe do palco de seu comício, o organismo que reúne as economias mais avançadas do mundo (China e Rússia não entram; são ditaduras) tenha lançado um relatório devastador sobre a corrupção no Brasil. A OCDE, na qual o Brasil até hoje não foi aceito, afirmou o que os brasileiros sabem há anos, mas muitas vezes são impedidos de dizer para não serem acusados do crime de fake news: a corrupção tornou-se objetivamente impune no Brasil.
A responsabilidade por isso, segundo a OCDE, é do Sistema de Justiça brasileiro. O relatório aponta, como o exemplo mais recente e mais chocante disso, a decisão do ministro Dias Toffoli, do mesmíssimo STF, de anular todas as provas de corrupção contra a Odebrecht – apesar das indiscutíveis confissões de culpa da empresa e da devolução de bilhões de reais do dinheiro roubado.
A OCDE aponta um fato prodigioso, já comentado com frequência na mídia independente: não há no Brasil, no momento, nenhum preso por corrupção. É como se o Brasil fosse o país menos corrupto do planeta, quando os fatos comprovam exatamente o oposto. O responsável direto por isso é o STF, cujas decisões comandam o funcionamento de todo o aparelho judiciário brasileiro – eliminou por completo a Operação Lava Jato, trata como inimigos os seus magistrados e absolve de forma sistemática os acusados de corrupção. Esse é o Brasil real – o Brasil de Toffoli, da Odebrecht e da cassação do procurador Dallagnol. Barroso, e todas as suas filosofias, estão no coração dele.