É raro, disse Hume, perdermos a nossa liberdade de uma só vez: em vez disso, ela vai sendo perdida em pedacinhos como um queijo vai sendo comido por um rato. Talvez o mesmo possa ser dito do Império da Lei, ou o Estado de Direito, especialmente em países como a Grã-Bretanha, onde ele está estabelecido há muito tempo e as pessoas o tomam como garantido, como se fosse um fenômeno natural e não algo conquistado.
Um dos inimigos do Estado de Direito é o sentimentalismo. Tanto um júri quanto um juiz descobriram que, se os manifestantes violarem a lei pelo que o júri ou o juiz consideram uma causa supostamente boa, eles podem ser justamente absolvidos em nome da liberdade de protesto.
Em 2020, jovens manifestantes em Bristol derrubaram uma bela estátua de mais de um século de Edward Colston, um mercador da cidade do final do século XVII e começo do XVIII, e a jogaram no porto da cidade. Colston doou para instituições na cidade, e pelo menos parte de seu dinheiro veio do comércio de escravos. A ação dos manifestantes foi claramente criminosa, mas eles foram absolvidos por um júri porque sua ação era supostamente idealista. O vandalismo em nome dos ideais sempre foi um passatempo popular, é claro, e a contribuição estética da estátua para a cidade não foi mencionada no debate subsequente sobre o assunto.
Mais recentemente, seis médicos e uma enfermeira foram absolvidos por um juiz por obstrução de ruas depois que eles foram presos por bloquearem a Lambeth Bridge, em Londres. O juiz que os absolveu disse: “Fiquei impressionado com a integridade e racionalidade de suas crenças. Suas evidências foram profundamente comoventes.”
Os médicos e enfermeiros estavam exigindo que o uso de petróleo fosse interrompido, e não mais fossem realizadas sua exploração e a de outros hidrocarbonetos. Claro, eles acreditavam que estavam ajudando a “salvar o planeta”, mas o que eles fizeram foi claramente ilegal e suscetível de impedir que seus colegas cidadãos cuidassem de suas próprias vidas de maneira normal.
Lancet, uma revista médica que frequentemente exala presunção apesar dos estudos fraudulentos que às vezes publica, afirmou que “há alguma evidência de que ações disruptivas ou radicais não violentas são bem-sucedidas em atrair a atenção pública por uma causa”. Não há nada nesta declaração que um nazista possa discordar.
“Protestos, como este, são como tentar reanimar um coração em parada cardíaca com choques, na esperança de que ele retome seu ritmo”, disse um dos médicos envolvidos no protesto após a absolvição. “Felizmente, hoje o tribunal reconheceu esse direito de protestar.”
Só resta esperar que o médico seja mais preciso em seu pensamento quando trata de seus pacientes. Bloquear uma rodovia não é nada como reanimar um paciente com choques elétricos por um motivo claro e definível. Mesmo que a causa fosse boa, é possível que o “choque” aplicado tivesse o efeito oposto ao pretendido, ou seja, um ódio à causa que tanto incômodo causou ao público.
O juiz ficou impressionado com a integridade e racionalidade das crenças e intenções dos manifestantes: mas ele ouviu argumentos contra seu ponto de vista? Será que ele ouviu que, no contexto atual, eles e pessoas como eles poderiam ter contribuído para o perigo neste inverno de pessoas idosas e pobres morrerem de frio porque não podiam pagar por aquecimento – ou melhor, se esse aquecimento ainda estivesse disponível? (Há alguns anos, a Lancet publicou um estudo sugerindo que dezessete vezes mais pessoas morreram de excesso de frio do que de excesso de calor.) Será que ele ouviu falar do fato de que a Grã-Bretanha contribui muito pouco para o aquecimento antropogênico da atmosfera – supondo que tal aquecimento fosse um fato estabelecido – e que aumentar os encargos financeiros da indústria britânica aumentava o risco de ela se mudar para outro lugar, em detrimento e empobrecimento do país? Ele entendeu como a eletricidade deveria ser gerada para dezenas de milhões de veículos movidos a bateria, e os custos ambientais do fornecimento de baterias, e a infraestrutura para torná-la possível – e assim por diante?
Além disso, obviamente não era o direito de protesto que estava em causa. Há muitos espaços públicos em Londres onde os protestos podem ser realizados sem bloquear a rodovia. Ninguém negaria aos médicos e enfermeiros o seu direito de protestar, mesmo que estivessem totalmente errados sobre o que protestavam. O direito de protesto não estava em causa: a causa era a obstrução ilegal da via pública.
Além disso, é fácil imaginar um protesto que o juiz não teria permitido. Suponhamos que, em vez de protestar contra o petróleo, os manifestantes tivessem protestado contra a chegada de meio milhão de imigrantes à Grã-Bretanha em um único ano (como aconteceu). Suponhamos que eles tenham aludido à pressão que isso exerceu sobre um mercado imobiliário já superlotado; que, se eles encontrassem trabalho, poderiam muito bem deprimir os salários, ou se deixassem de trabalhar, exigiriam trabalho forçado do resto da população para pagar seus benefícios sociais; que o serviço de saúde enfrentaria um ônus adicional que não teria condições de enfrentar; que as comunidades em que os imigrantes se concentrassem poderiam não acolher sua chegada e seriam mudadas sem que ninguém o desejasse, uma afronta à democracia. Mesmo que esses argumentos fossem errados ou apenas unilaterais, eles seriam racionais e poderiam ser defendidos com toda sinceridade. Será que o juiz iria absolver aqueles que os utilizassem para justificar a obstrução da rua? Mesmo que quisesse fazê-lo, ele teria ficado com muito medo por causa da reação das pessoas virtuosas.
Em outras palavras, o juiz viu o seu papel não como o de alguém que deve fazer se cumprir a lei como ela (razoavelmente) é, mas como o de alguém que deve permitir que certas pessoas sejam isentas de suas disposições. Seu trabalho era decidir o que era uma boa ou uma má causa, e quão boa uma causa tinha que ser para que os manifestantes pudessem incomodar ilegalmente seus concidadãos impunemente. Ao se dizer “comovido” com as evidências dos criminosos, ele estava retirando a venda dos olhos da estátua da justiça e colocando pesos em sua balança: uma lei para as pessoas que ele gosta e outra para aquelas que ele não gosta.
A Lancet está de acordo com essa visão da lei, que é nenhuma lei. Provavelmente, uma boa parte da intelectualidade também está de acordo com isso, o que significa que a adesão em suas mentes ao Império da Lei, pelo qual todas as pessoas são julgadas sob mesmo padrão, é muito frouxa, se é que ela existe. A longo prazo, se essa tendência continuar, o resultado só pode ser uma guerra de todos contra todos.
Theodore Dalrymple é médico psiquiatra e escritor. Aproveitando a experiência de anos de trabalho em países como o Zimbábue e a Tanzânia, bem como na cidade de Birmingham, na Inglaterra, onde trabalhou como médico em uma prisão, Dalrymple escreve sobre cultura, arte, política, educação e medicina.