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Napoleão: o primeiro déspota igualitarista da Europa

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Com o lançamento do novo filme de Ridley Scott, Napoleão, os espectadores encontram uma versão cinematográfica de Napoleão envolvido em um romance tumultuado tendo como pano de fundo as convulsões das guerras napoleônicas.

Isso reavivou o interesse pelo comandante militar francês e deixou muitos se perguntando o que eles devem pensar do Napoleão real e histórico. Para muitos brasileiros na plateia – que, ao contrário dos europeus, sabem apenas que a família real portuguesa se mudou para o Brasil por causa dele – esta pode ser a primeira vez que levam Napoleão em consideração.

No geral, essa questão certamente não é nova. Napoleão não tem uma reputação como a de Hitler, por exemplo. Mesmo as pessoas que nunca leram um livro de história na vida sabem que não devem gostar desse cara. Também não nos dizem rotineiramente que Napoleão é benigno como, por exemplo, George Washington. Em vez disso, o legado de Napoleão permanece muito instável. Mesmo na França, aparentemente não há consenso, como observado em um artigo relativamente recente da France24 intitulado “Napoleão: tirano ou gênio – ou ambos?”. Seu legado é “complicado”, diz o Washington Post  e não está claro em geral se devemos considerar Napoleão como um herói ou um ditador ou um agente do “iluminismo”.

A questão é importante, é claro, porque as visões de pessoas sobre grandes figuras históricas são muitas vezes uma parte importante de como as questões históricas são vistas em geral. Nos Estados Unidos, por exemplo, alguém que vê Franklin Roosevelt com grande admiração provavelmente possui visões ideológicas diferentes de alguém que admira Richard Nixon. Da mesma forma, é provável que as visões ideológicas de alguém moldam – ou são moldadas pelas – as visões de figuras como Lênin, Churchill, Cromwell, Luís XIV ou Bismarck.

Hoje, especialistas e críticos tanto da esquerda quanto da direita ainda têm muitas coisas gentis a dizer a favor de Napoleão sempre que seu legado surge na mídia. Muitos apregoam suas políticas supostamente iluminadas como um “modernizadoras”. Os conservadores, que são facilmente impressionados com a pompa militar, muitas vezes insistem que Napoleão nos fornece um modelo de masculinidade impressionante como general.

Do ponto de vista da ideologia conhecida como liberalismo clássico (isto é, libertarianismo), no entanto, o legado de Napoleão é menos ambíguo. Napoleão foi um ditador militar que implementou um estado policial na França, e foi um defensor de um maior poder estatal. A guerra foi seu principal instrumento, recrutando centenas de milhares de homens para realizar suas conquistas. Se visto sob a perspectiva da liberdade, da paz e da oposição ao poder estatal, é fácil concluir que a Europa teria sido melhor sem Napoleão.

Por que ainda defendem Napoleão

Parte da razão pela qual o legado de Napoleão permanece ambíguo para muitos é que, apesar de seu belicismo e status de ditador, Napoleão também aparece para muitos como alguém que “modernizou” a Europa, levando adiante as “partes boas” da Revolução Francesa. Na política, ele centralizou o poder do estado, opôs-se ao papado, e esmagou muitas das antigas políticas medievais da Europa. Para os estudiosos modernos que ainda se apegam à ideia de que todas as coisas modernas são melhores do que todas as coisas “medievais”, o legado de Napoleão contém muito de positivo.

Por exemplo, podemos encontrar um resumo sucinto da visão de centro-direita nas palavras do historiador Andrew Roberts. Roberts, um neoconservador thatcherista, escreve que Napoleão não deve ser lembrado por suas guerras, mas pelo “Código Napoleão, aquela brilhante purificação de 42 códigos legais concorrentes e muitas vezes contraditórios em um único corpo de direito francês facilmente compreensível”. Roberts também nos diz que Napoleão foi ótimo porque “consolidou o sistema administrativo baseado em departamentos e prefeitos. Ele criou o Conselho de Estado, que ainda veta as leis da França, e o Tribunal de Contas, que supervisiona suas contas públicas. Organizou o Banque de France… Em outras palavras, Napoleão foi ótimo porque expandiu o papel e o poder do estado central. O Código Napoleônico, por exemplo, foi fundamental em um processo que aboliu a independência jurídica e os costumes locais em favor de um único aparato jurídico controlado centralmente”.

Em sua onda de conquistas pela Europa, Napoleão ajudou a centralizar o poder tanto na França quanto em políticas estrangeiras. As conquistas de Napoleão na Alemanha e na Itália ajudaram a abolir ou enfraquecer a resistência descentralizada à unidade nacional, abrindo caminho para os estados nacionais alemães e italianos nas décadas posteriores.

Roberts também nos diz que Napoleão foi ótimo porque era um patrono da arquitetura fina. Então, não se preocupe em lembrar daqueles incontáveis jovens recrutados por Napoleão e enviados para o moedor de carne. Lembre-se, em vez disso, que Napoleão gastou heroicamente dinheiro de impostos em alguns edifícios bonitos.

Uma avaliação semelhante vem do magnata da revista de estilo de vida Bryan Goldberg, que nos dá uma visão típica de centro-esquerda. Para Goldberg, Napoleão deveria ser lembrado como alguém que gastou seu tempo “promovendo a ciência, patrocinando artistas, escrevendo códigos igualitários de leis e integrando pessoas marginalizadas em uma sociedade mais iluminista”.

Se assim for, então Napoleão talvez possa ser creditado como um pioneiro na ideia do estado policial igualitarista e iluminista. O historiador Jacques Godechot, por exemplo, rotulou o regime de Napoleão como “talvez o precursor dos modernos estados policiais” e o historiador Eugen Weber rotulou o regime de um estado policial sem qualificação. O regime de Napoleão foi generoso e gentil em comparação com os estados policiais do século XX, é claro, mas também há poucas razões para elogiar o regime. Michael Sibalis conclui: “A polícia de Napoleão, no entanto, exerceu um controle rígido sobre todas as manifestações públicas de opinião, pagou uma rede de agentes secretos para manter a nação sob vigilância e deteve os inimigos do regime em prisões especiais do estado sem acusação ou julgamento. Em suma, eles regularmente ignoravam os procedimentos judiciais adequados e violavam sistematicamente os direitos civis que a Revolução Francesa havia proclamado…”

Napoleão, inimigo do liberalismo

Napoleão foi um inimigo do liberalismo clássico também em outros aspectos importantes. Napoleão tinha pouco respeito pelo livre comércio e pelos valores burgueses. Sem surpresa, Napoleão desperdiçou grande parte da riqueza da França em guerra e propriedade do governo. Como disse Steven Pinker: “Napoleão, esse expoente da glória marcial, menosprezou a Inglaterra por considera-la ‘uma nação de lojistas’. Mas, na época, os britânicos ganhavam 83% a mais do que os franceses e desfrutavam de um terço a mais de calorias, e todos sabemos o que aconteceu em Waterloo”. (A autoria da citação de Napoleão pode ser apócrifa, mas não deixa de ser adequada.)

Napoleão teve um efeito indireto devastador sobre o liberalismo europeu. Desde que Napoleão marchou sob a bandeira da França ilumista, igualitária e “liberal”, seus exércitos conquistadores passaram a ser associados ao próprio liberalismo. O efeito a longo prazo foi virar muitos contra a ideologia em geral. O historiador Ralph Raico observa que o liberalismo clássico estava em ascensão nos estados alemães durante o século XVIII. Mas isso se inverteu no século XIX. Por que? Raico afirma que “não há dúvida de que uma das principais – talvez a principal – razão para a mudança está na história política e militar do período: basicamente, a tentativa da França revolucionária de conquistar e governar toda a Europa”.

Em meados da década de 1790, Raico escreve: “Os direitos do homem, a soberania popular, o iluminismo francês com seu ódio às tradições milenares e crenças religiosas dos povos europeus seriam impostos pelo poderio militar. Para isso, os exércitos franceses vitoriosos e irresistíveis invadiram, conquistaram e ocuparam grande parte da Europa”. O resultado final foi a resistência a qualquer coisa associada à ideologia oficial do regime francês – que, é claro, não era realmente liberal. Como resultado,

“Na natureza das coisas, esses exércitos invasores, trazendo consigo uma ideologia estrangeira, produziram hostilidade e resistência contra essa ideologia, uma reação nacionalista militante. Foi o que aconteceu na Rússia e Espanha. Acima de tudo, foi o que aconteceu na Alemanha. O individualismo, os direitos naturais, os ideais universalistas do Iluminismo – estes se identificaram com os odiados invasores, que subjugaram e humilharam o povo alemão. Essa identificação foi um fardo que o liberalismo na Alemanha teve que carregar a partir de então.”

Como os americanos repetidamente afirmariam depois de 1945, Napoleão alegou que os países estrangeiros ou aceitavam a invasão – ou pelo menos exigiam a invasão – a fim de abraçar o iluminismo e a igualdade. Napoleão insistiu que “os povos da Alemanha, como da França, Itália e Espanha, querem igualdade e ideias liberais”, justificando assim a abolição (por conquista) dos antigos regimes. Não surpreendentemente, muitos estrangeiros não apreciaram a generosidade de Napoleão.

Aqueles que compram as ideias por trás das guerras modernas dos Estados Unidos pela democracia global hoje podem, portanto, achar o raciocínio de Napoleão convincente. Para aqueles de nós, por outro lado, que realmente valorizam a autodeterminação, o livre mercado, a paz e a liberdade, Napoleão tem pouco a ser admirado. Ele era um déspota, um belicista, um centralista e um hipócrita que dizia espalhar a liberdade para justificar sua própria ânsia de conquista e poder.

 

Ryan McMaken é bacharel em economia e mestre em políticas públicas e relações internacionais pela Universidade do Colorado. É editor do Mises Institute e autor do livro: Commie Cowboys: The Bourgeoisie and the Nation-State in the Western Genre.

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