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O aposentado Aniz Bechara, 89 anos, move uma guerra jurídica contra a família Maggi, controladora de um dos maiores conglomerados de agronegócio do mundo, pela propriedade de 300 hectares nos arredores de Cuiabá. Até uma pista de pouso privada foi construída no local.
Bechara, que herdou as terras que foram loteadas por seu pai, briga para provar que empresas controladas pelo ex-ministro da Agricultura e ex-governador de Mato Grosso Blairo Maggi (fortuna de US$ 1,4 bilhão, segundo a Forbes) e por parentes dele estão utilizando um instrumento da lei destinado a proteger pessoas de baixa renda para se apossar dos terrenos.
Blairo Maggi é um dos sócios da Amaggi, principal produtor e exportador de soja de Mato Grosso. Eraí Maggi Scheffer, primo de Blairo, é dono do Grupo Bom Futuro.
Empresas controladas pelos dois ajuizaram uma série de ações de usucapião contra o espólio de Feres Bechara, pai de Aniz, que começou a comprar as terras no final dos anos 1950 e terminou de regularizar os títulos de propriedade em 1979.
A família de bilionários afirma ter comprado de posseiros que já ocupavam os terrenos.
A ação de usucapião é um instrumento jurídico por meio do qual pessoas que estão ocupando imóveis há mais de 15 anos sem a contestação do dono podem se tornar proprietárias desses imóveis.
O argumento dos Maggi é simples: alegam que as terras da família Feres estão ocupadas por terceiros, de quem foram comprados os lotes, há “mais de 30 anos”.
Como prova, apresentam registros de título de posse e laudos de que foram feitas melhorias nos terrenos. Os laudos foram feitos por um perito contratado pelos Maggi e anexados aos processos já junto com as petições iniciais. Em nenhum dos casos foi autorizada a realização de perícia judicial.
Mas, segundo Aniz Bechara, os Maggi compraram os lotes de posseiros que nunca foram donos das terras.
Aniz recebeu o UOL em seu apartamento em Moema, na zona sul de São Paulo, para contar sua história.
“Nunca tive contato com os invasores. Eles não compraram, não pagaram. Invadiram!”
Ele relata nunca ter sido procurado por ninguém ligado aos Maggi. Nem para comprar os terrenos, nem para tentar um acordo, nem mesmo para fazer ameaças. Só ficou sabendo que a família ocupava a terra quando foi citado nas ações de usucapião.
Hoje, diz ele, não existe mais possibilidade de acordo. “Só quero recuperar o que é meu”, disse ao UOL. Depois de reaver os terrenos, diz ele, o objetivo é vender. Mas não para os Maggi: “Sem acordo”.
“O certo é o recuperar os terrenos, esse seria o justo. Porque eles não compraram, não pagaram. Invadiram”, disse Bechara ao UOL.
Segundo o herdeiro, os Maggi já se apropriaram de cerca de 300 dos 474 hectares do terreno de seu pai.
Procurado pelo UOL, Blairo Maggi disse, por meio de sua assessoria de imprensa, que não comentaria o caso porque “o assunto está judicializado, assegurando às partes o direito de ação e do contraditório”.
Já o Grupo Bom Futuro, empresa do ramo de Eraí da família Maggi, também disse que não se pronunciaria fora dos autos.
Já a Amaggi, corporação de produção e exportação de soja e derivados da família Maggi e que controla algumas das empresas que figuram como autoras das ações de usucapião, disse que só fala sobre assuntos ligados diretamente à companhia, e não aos sócios.
O histórico da propriedade
Em Mato Grosso, Feres comprou a terra, loteou e entregou para uma imobiliária vender.
A imobiliária, diz Aniz, era da irmã do ex-deputado e ex-ministro da Reforma Agrária Dante de Oliveira (MDB-MT), morto em 2006, autor da emenda constitucional que previa a eleição direta para presidente da República e deu origem ao movimento Diretas Já, em 1983, no final da ditadura militar.
Ela vendia os terrenos e enviava o dinheiro a Feres, que morava em São Paulo, numa casa de quatro mil metros quadrados nos Jardins. O imóvel foi depois comprado pela família Feffer, dona da Suzano.
Depois que Feres morreu, Aniz passou a frequentar o terreno em Mato Grosso para regularizar a situação fundiária dos lotes. Dedicou-se, então, a lavrar alvarás e transferir os títulos de propriedade a quem comprou os lotes e efetivamente pagou.
Os lotes ocupados pelos Maggi hoje, diz ele, foram comprados das mãos de pessoas que nunca pagaram para estar ali. O objetivo de Aniz agora é regularizar a situação das terras e vendê-las.
Nas ações de usucapião, os representantes da família Maggi alegam que os lotes foram comprados de pessoas que os ocupavam “há mais de 30 anos” e que fizeram benfeitorias nas terras. Isso, dizem, seria o suficiente para comprovar que eles seriam os verdadeiros donos das terras.
Na Justiça
A defesa da família Bechara, no entanto, contesta essas informações. Em todos os processos, aos quais o UOL teve acesso, os advogados afirmam que só foram apresentadas provas de ocupação desde 2013 e que os vendedores dos lotes nunca pagaram pela compra dos terrenos de Feres – o que impediria a posse de fato, conforme as petições da advogada Cleise Clementi, que representa o espólio de Feres Bechara.
Até agora, no entanto, a estratégia dos Maggi tem tido sucesso e eles têm conseguido sentenças garantindo o usucapião dos lotes, que já ocupam. E já até instalaram uma pista de pouso, também alvo de contestação judicial.
São, ao todo, oito processos envolvendo empresas ligadas à família Maggi. Apenas um envolve a empresa da família de Blairo, a Beta Administração e Participações. Os demais envolvem empresas de outros ramos da família, ligados a Eraí Scheffer.
Nessa ação, a Beta afirma que comprou, entre junho e agosto de 2013, 74,2 hectares de uma série de famílias que, segundo a empresa, estavam na terra há “mais de 30 anos”.
Essas compras foram feitas de duas maneiras: compradas por Blairo e depois transferidas à Beta; ou por meio de uma permuta entre Blairo e a esposa, donos da Beta, e as empresas Cuiabá Rural e São José, da família de Eraí. Também nesse caso as terras foram integralizadas ao patrimônio da Beta.
Todos os contratos são de “cessão de direitos possessórios” – ou seja, são contratos de venda do direito de tomar posse e ocupar a terra, mas não de venda da propriedade da terra.
A ação da Beta é contra o espólio de Feres Bechara e o dono de outros lotes, Ademar de Carvalho. Ambos contestaram todas as informações levadas ao processo pela empresa, e pediram perícia das terras, no intuito de comprovar que os posseiros não estão na terra há tanto tempo e nem fizeram melhorias nos terrenos.
A negativa da perícia
O juiz do caso, Alexandre Elias Filho, da 2a Vara Cível de Cuiabá, negou todos os pedidos e deu razão à Beta. Na sentença, ele disse estar “suficientemente convencido” pelo “conjunto fático-probatório carreado nos autos”.
Sobre a perícia, disse que o “estudo técnico” apresentado pela Beta já seria suficiente para atestar “a posse mansa e ininterrupta junto aos confrontantes que, inclusive, assinaram documentos reconhecendo os limites do imóvel, sem que houvesse qualquer insurgência”.
Uma das alegações do espólio de Feres Aniz é que Blairo comprou as terras de pessoas que compraram os lotes, mas nunca pagaram. Para o juiz, no entanto, isso é irrelevante para o caso: “Desde os primeiros possuidores até a cessão dos direitos e integralização do capital social da parte autora [Beta], a posse foi exercida de forma mansa, pacífica e ininterrupta, sem qualquer oposição ao longo de todos os anos”, disse.
Ademar alegou que há terras públicas no meio dos lotes comprados pela Beta. Mas o juiz Alexandre Elias disse na sentença que a União e o estado de Mato Grosso não se manifestaram no processo e que o município de Cuiabá nem sequer respondeu à intimação. Os entes públicos, disse o magistrado, “demonstraram desinteresse na lide [disputa], expressa ou tacitamente”.
Tanto o espólio de Feres quanto Ademar entraram com embargos de declaração – instrumento usado para pedir ao juiz que esclareça pontos de suas decisões ou para pedir que ele se pronuncie sobre algum argumento levado a ele, mas não exposto na sentença.
Única vitória
Até agora, Aniz Bechara só teve uma vitória na Justiça. No dia 19 de fevereiro deste ano, o desembargador Sebastião de Moraes Filho, do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, anulou uma das sentenças que garantia o usucapião de um trecho do terreno aos Maggi.
Na verdade, a sentença garantiu o terreno a um terceiro, que depois o revendeu ao Grupo Bom Futuro. Só que, segundo o desembargador, os advogados que representaram o autor da ação de usucapião não apresentaram procuração no processo – ou seja, não comprovaram que foram contratados para atuar no caso em nome do autor da ação.
Sebastião de Moraes também considerou que o juiz da primeira instância deveria ter convocado uma audiência de instrução do caso, para que as partes apresentassem provas e documentos do que alegam. Isso não aconteceu até agora.
Para o desembargador, a situação limitou o direito de defesa de Aniz Bechara, o que fez com que a sentença fosse ilegal.
Aeroporto
Outro dos movimentos de Bechara barrado na Justiça foi tentar saber da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) que documentos foram apresentados para registrar a pista de pouso no terreno.
A agência negou os pedidos dos Bechara, e a defesa dele foi à Justiça Federal.
Em primeira instância, o juiz mandou Anac e Bechara entrarem num acordo. A agência apresentou documentos sobre o aeródromo, mas nada relacionado à posse ou à propriedade do terreno.
Bechara recorreu, pedindo que a Anac apresentasse os documentos que faltavam, mas o juiz negou e encerrou o processo.
O caso agora está em grau de recurso no Tribunal Regional Federal da 1a Região.
Hoje funciona no terreno o aeroporto das empresas do grupo, o Aeródromo Bom Futuro. Segundo o site da companhia, o aeródromo é um “empreendimento ‘low fare’ [de baixo custo], ideal para quem busca agilidade e economia na conectividade com a capital de Mato Grosso”.