(Luís Ernesto Lacombe, publicado no jornal Gazeta do Povo em 14 de abril de 2024)
O Brasil está do avesso. Quem defende menos Estado, quem se opõe ao controle social, à censura, quem se entrega à defesa da liberdade agora é chamado de fascista. Os adoradores do Estado, aqueles que cometem ilegalidades, abusos e arbitrariedades e aqueles que apoiam tudo isso agora são os grandes defensores da democracia.
Críticas foram transformadas em ataques. A intenção de debater virou crime. Passou a ser proibido questionar, fazer perguntas, apontar contradições, descumprimento das leis, cobrar explicações, transparência, duvidar, desconfiar, ser curioso. Os poderosos não querem ser “incomodados”. Quem ousa fazer isso é perseguido, censurado, intimidado, investigado. Não importa se tem foro privilegiado ou não. Há inquéritos surreais no Supremo desde a origem, inquéritos eternos, amplos, sigilosos, feitos sob encomenda para isso.
Já não valem as leis. Os poderosos são as leis. Vendem-se como “justiceiros”, salvadores e protetores da democracia no Brasil. Dizem que defendem o Estado de Direito, atacando o Estado de Direito. Por enquanto, têm inimigos bem definidos, e contra eles vale tudo. Os que aplaudem a perseguição e consideram que dela se beneficiam devem ficar espertos… Liberdade não se fatia, ou todos têm ou ninguém tem.
Romperam-se todos os limites, numa busca insana por “culpados pelos atentados à democracia brasileira”. Tudo do avesso. Os vilões maldisfarçados de heróis. As liberdades ruíram sob os punhos de uma gente “horrível, uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia…” Uma gente que coleciona crimes próprios, na mesma proporção em que os inventa para seus inimigos. “Fake news”, “desinformação”, “milícia digital”, “discurso de ódio”, “desordem informacional”…
Grande parte da imprensa aplaudiu o descalabro. Seus inimigos são os mesmos inimigos escolhidos pelos poderosos. Esse jornalismo que deixou de ser jornalismo não tinha visto problema no que agora trata como “descumprimento dos mais estreitos limites dos direitos e das liberdades individuais previstos na Constituição”. E por quê? Porque havia um “mal extremamente ameaçador a combater”.
Agora que considera que o inimigo maior do Brasil — a “extrema direita”, o “fascismo” — foi derrotado, a imprensa tradicional admite que as leis foram rasgadas, que as ilegalidades, os abusos e arbítrios campearam nos últimos cinco anos… Mas era tudo por uma “boa causa”. Então, cabe o perdão, mas é preciso que o STF e o TSE agora tomem jeito, passem a agir “sem avançar o sinal, com mais ortodoxia e autocontenção”.
Artigos e editoriais dos principais jornais do país nas últimas semanas expõem a cumplicidade da imprensa com práticas ilegais do Judiciário… A censura até segunda-feira, encampada por uma Carmen Lúcia preocupada com a possibilidade de a censura produzir censura… Chegamos a este nível: morreu o “cala a boca já morreu”. Jornalistas estão aí, justificando “a força bruta para evitar uma catástrofe no curto prazo”, mas concluindo que esse tempo passou. O Brasil foi salvo.
Está no jornal: “Houve excessos do STF e do TSE, que se estenderam bem além do razoável”… E o aval da imprensa tradicional para que as leis fossem rasgadas, parece, perdeu a validade. Suspender o cumprimento da Constituição por um período determinado não lhe pareceu errado. Era por um bem maior. Agora o jornalismo insepulto publica: “O STF cometeu erros evidentes”… E ninguém pode esquecer: com o apoio das redações maquiavélicas, com sua permissão à prática de toda sorte de absurdos. Foram cúmplices, mas a proposta indecorosa é que se esqueça tudo isso. Parece que é tempo de voltar ao império das leis, com a carinha limpa, de banho tomado.
Está nos jornais: “Algum endurecimento da Justiça foi necessário para conter as ações antidemocráticas”. A loucura é assim: em algumas situações, democracia deixa de ter relação com o cumprimento das leis. Pelo bem do Brasil, danem-se as leis, mas passou, passou. “É hora de recobrar um clima de normalidade, de o STF evitar o voluntarismo”. Está muito claro na imprensa tradicional: a democracia foi salva pelo autoritarismo, pela tirania. Não tinha outro jeito…
A partir de agora, a imprensa indica, tudo mudou. Pelo que entendi das linhas mal enjambradas nos jornais, as leis devem voltar a valer, sem interpretações mirabolantes. As leis que já existem, apenas as criadas por quem de direito, pelo Legislativo. Em vez de censura só por mais dez dias, a Constituição deve se impor imediatamente, com liberdade de expressão garantida e proibição implacável à censura. O que foi feito de errado pelo Judiciário e pela imprensa está definitivamente perdoado e deve ser entendido como a única “tábua de salvação” então possível para o Brasil.
Acredita na imprensa tradicional quem ainda se ilude… Acredita no STF quem aceita o avesso. Carmen Lúcia afirma: “Todas as pessoas físicas e jurídicas estão obrigadas a se submeter ao ordenamento jurídico brasileiro”. Ela esquece de dizer que o Poder Judiciário também deve ser obrigado a isso. É assim no país do avesso. Alexandre de Moraes insiste que “liberdade de expressão não é liberdade de agressão”. É assim no país do avesso. E Luís Roberto Barroso, diz, para bom entendedor, com pose de “herói da imprensa”, que não há nada de errado em ser o avesso… E assunto encerrado.