Gazeta do Povo
Criticada por juristas, políticos de oposição e operadores do direito por sua natureza controversa, sem respaldo do Legislativo, a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ofereceu meios para sustentar decisões da Corte para o bloqueio de perfis nas redes sociais, além da derrubada de postagens. Ao menos 24 decisões neste sentido foram tomadas pelo TSE a partir de averiguações do órgão, segundo documentos que constam em um relatório parcial da Câmara dos Estados Unidos divulgado nesta quarta-feira (17).
Os documentos obtidos pelos parlamentares americanos são fruto de uma intimação feita ao X. O dono da plataforma, Elon Musk, vem denunciando nas últimas semanas as ações de Moraes, a quem acusa de censura, violação de leis brasileiras e atuar “como um ditador”. O bilionário havia prometido tornar públicos esses documentos, o que acabou ocorrendo via Congresso dos EUA.
Combate à desinformação e melhora da imagem do TSE
A Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação foi criada em março de 2022, pelo então presidente do TSE e ministro do STF Edson Fachin, no âmbito do Programa de Enfrentamento à Desinformação, lançado em agosto de 2019 com foco nas Eleições municipais de 2020, mas a partir de agosto de 2021 se tornou permanente, com a assinatura da Portaria TSE nº 510/2021, pelo então presidente da Corte eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso.
Quando de sua criação, o assessor-chefe do órgão, Frederico Alvim, servidor do Tribunal, afirmou que o programa visava intensificar o trabalho desenvolvido a partir das eleições de 2018, a fim de garantir que os eleitores pudessem exercer a escolha de seus candidatos e seu direito de voto de forma legítima, “sem interferência de campanhas difamatórias”. Além disso, a criação da AEED também estaria ligada a uma campanha para construção de uma imagem positiva da Corte junto à opinião pública.
Nas eleições de 2022, a AEED coordenou o Grupo de Análise e Monitoramento, previsto no Plano Estratégico para aquele pleito. Segundo documento que consta no site do TSE, o grupo tinha “atribuição de receber, registrar, analisar e dar o devido encaminhamento aos conteúdos potencialmente desinformativos (‘apontamentos’) sobre o processo eleitoral, por meio de preenchimento de tickets organizados num sistema próprio de gerenciamento de demandas”. O grupo era integrado por servidores do TSE.
“Cumpre ao Grupo monitorar a circulação de práticas de desinformação contra o processo eleitoral, a partir de critérios estritamente relacionados ao escopo do Programa, isto é, ‘palavras-chaves’ que remetam a conteúdos ligados ao processo eleitoral e suas fases, aspectos do sistema eletrônico de votação, Justiça Eleitoral e quaisquer outros atos relacionados à realização das eleições”, diz o documento oficial do TSE
Eles também eram orientados a receber, analisar e registrar todo e qualquer conteúdo com “potencial desinformação sobre o processo eleitoral” e adotar “providências cabíveis para mitigar os efeitos da desinformação detectada”, como encaminhar o conteúdo para que a Secretaria de Comunicação do TSE elaborasse nota de esclarecimento, ou para parceiros de checagens de fatos, notificar as plataformas ou ainda alertar órgãos de segurança e investigação.
Segundo o advogado especialista em Direito Constitucional, Aécio Flávio Palmeira Fernandes, legalmente, o TSE, sendo o órgão da Administração Federal no âmbito eleitoral, tem a prerrogativa de criar o órgão. Dentre as suas funções, estaria a de monitorar e informar sobre condutas possivelmente criminosas que poderiam, em tese, representar risco a bens e valores essenciais à sociedade, bem como afetar de forma negativa a credibilidade das instituições e a capacidade dos eleitores de exercerem o seu direito de voto de forma consciente e informada.
Porém, o advogado explica que o problema surge quando a AEED passa a entender e definir o que pode ser considerado como desinformação. “Este tipo de ação fere a liberdade de expressão frontalmente, já que o art. 41 da Lei das Eleições veda expressamente a censura”, afirma.
Segundo o Código Eleitoral, calúnia, difamação, injúria e denunciação caluniosa são crimes. “O que não se enquadrar nessas categorias e não constituir um ‘ato ilícito’, dentro da definição dos artigos186 e 187 do Código Civil, não pode ser inserido como conteúdo criminoso ou civilmente reparável, sendo protegido pela Carta Constitucional”, comenta o jurista. Além disso, ele salienta que cabe ao Congresso Nacional legislar sobre o que de fato é desinformação.
“Só uma lei penal (lei em sentido estrito, aprovada pelo Congresso, sancionada pelo Presidente da República e publicada no Diário Oficial da União) pode definir o que é ou não crime, o que é ou não permitido. Isso decorre do inciso II, do art. 5º da Constituição, onde ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei”, conclui.
Das decisões do TSE que compõem o relatório, 32 têm por base as denúncias de desinformação formuladas pela AEED. Desse total, 24 demandam a remoção de publicações ou perfis, enquanto as outras oito definem o restabelecimento de contas anteriormente bloqueadas pelo Tribunal. O principal motivo citado para os bloqueios é que esses perfis estavam questionando a integridade eleitoral.
As decisões proferidas pelo TSE – que determinaram o banimento de perfis e a exclusão de conteúdos – têm por base uma resolução do próprio Tribunal, a de número 23.714, de 20 de outubro de 2022, cujo artigo 2º veda a “divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos”, incluindo, como penas, a remoção de conteúdos, bloqueio de perfis e o aplicação de multas.
As decisões também citam com frequência os artigos 296 do Código Eleitoral e 286 do Código Penal, que preveem, respectivamente, detenção de até dois meses e pagamento de multa para quem “promover desordem que prejudique os trabalhos” eleitorais; e detenção de três a seis meses e multa para quem “incitar, publicamente, a prática de crime”.
Esses dispositivos foram usados, por exemplo, para a derrubada de postagem de um vídeo do deputado Marcel van Hattem, em novembro de 2022, e para a remoção dos perfis da deputada Carla Zambelli (PL-SP).
Mesmo após as eleições, em junho de 2023, a AEED novamente acionou a Justiça, desta vez no caso do youtuber Monark, que também teve suas contas bloqueadas por determinação de Moraes, no âmbito do Inquérito 4.923, que apura os atos de 8 de janeiro em Brasília.
A assessoria, “mediante pesquisa em dados abertos de mídias sociais, detectou publicação realizada pelo influenciador e podcaster ‘Monark’, na plataforma digital Rumble, contendo entrevista com o Deputado Federal FILIPE BARROS (PL-PR), na esteira da qual são difundidas notícias falsas sobre a integridade das instituições eleitorais”, diz a decisão, divulgada no relatório do Comitê da Câmara dos Deputados dos EUA. A AEED informou à Justiça que outros perfis associados ao youtuber haviam sido criados, levando ao pedido de bloqueio destas contas também.
Órgão ocupou o lugar do Ministério Público, diz Dallagnol
O ex-procurador federal Deltan Dallagnol afirma que uma análise jurídica inicial revelou “padrão apavorante” nas decisões do TSE, a partir das provocações da AEED. “Esse órgão monitorou a internet e as redes sociais para identificar qualquer postagem crítica ao TSE, aos seus ministros e ao processo eleitoral, acessando em seguida ao ministro, que expedia decisões de ofício”, disse.
De acordo com o Dallagnol, o órgão teria exercido indevidamente o papel da Procuradoria-Geral da República (PGR), que tem o direito de requerer medidas perante a Suprema Corte em matéria penal. Para ele, não está clara a legitimidade da AEED para peticionar ao STF. O ex-procurador reclama ainda da falta de transparência e de violação da lei quando “não se sabe qual legislação serviu para criar o órgão, nem os critérios usados pra buscar e identificar contas e postagens ou quais servidores foram encarregados da tarefa”.
TSE lança estrutura para agilizar decisões judiciais
Apesar da continuidade de falta de legislação para corroborar as ações da AEED, o TSE deu um passo extra em 2024 para seguir atuando de forma autônoma na fiscalização e controle de conteúdo e de usuários nas redes sociais.
Em março, o Tribunal lançou uma parceria com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) para criar o Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (Ciedde).
O novo centro, chamado por parlamentares de oposição de “Ministério da verdade”, reúne vários órgãos públicos para “combate à desinformação, discursos de ódio, discriminatórios e antidemocráticos no âmbito eleitoral”, segundo a assessoria do TSE.
“Entre as funções delegadas ao centro estão a troca de informação entre seus integrantes, de modo a agilizar a comunicação entre os órgãos, entidades e plataformas de redes sociais, e aprimorar a implementação de ações preventivas e corretivas”, diz a assessoria de imprensa da Justiça Eleitoral.
Críticos da inovação, porém, dizem que ela permitirá decisões judiciais mais instantâneas e menos transparentes para bloqueios de sites e perfis em redes sociais.
Para o senador Eduardo Girão (Novo-CE), o formato do centro de monitoramento é preocupante e testa limites da censura e da perseguição política. Girão receia que o Ciedde, ao se juntar à Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD), à Advocacia-Geral da União (AGU) e à Secretaria de Comunicação (Secom) da Presidência da República, se constitua no “grande censor do Brasil”, com poderes para definir o que pode e o que não pode ser dito.
O senador lamentou que a integração eletrônica proposta por Moraes em favor de mais rapidez e eficácia no combate a sites e publicações que criticam o próprio TSE foi extraída do Projeto de Lei (PL) 2.630/2020, conhecido como PL das Fake News ou da Censura – proposta já aprovada pelo Senado, mas que deve ser reformulada por um grupo de trabalho na Câmara dos Deputados, sem previsão para ser votada.