Brasil prepara contra-ataque às imposições ambientais unilaterais da Europa
Congresso brasileiro discute Lei da Reciprocidade, um contra-ataque do país às imposições ambientais europeias
Gazeta do Povo
Apesar do aumento da pressão doméstica e internacional, ainda não há sinais de que a Comissão Europeia vá adiar a implementação da Lei Antidesmatamento (EUDR), programada para vigorar ao fim deste ano, que exigirá das empresas a comprovação de que seus produtos não vêm de áreas desmatadas depois de dezembro de 2020.
Inicialmente, a obrigação de certificar e rastrear os produtos será aplicada a sete commodities consideradas de maior risco para o desmatamento: soja, carne bovina, óleo de palma, madeira, cacau, café e borracha. À exceção do óleo de palma, o Brasil é um dos principais fornecedores globais de todas as cadeias afetadas.
“Ninguém questiona a legitimidade de políticas voltadas à preservação ambiental e combate ao desmatamento, mas há muito protecionismo verde escondido atrás de boas intenções”, declarou recentemente, em entrevista à BBC, a secretária de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Tatiana Prazeres.
Na visita do presidente da França ao Brasil, em março, Lula e Macron anunciaram um plano de R$ 5 bilhões para apoiar a economia sustentável na Amazônia, mas não fizeram nenhuma declaração sobre a polêmica lei antidesmatamento. Fontes ouvidas pela Gazeta do Povo apontam que o governo Lula “não enxerga” uma forma de enfrentar a legislação europeia e que, para agir, precisará de um fato novo. Esse fato novo deve vir do Parlamento brasileiro, que prepara um contra-ataque às medidas unilaterais europeias.
Tereza Cristina, relatora da Lei da Reciprocidade: régua ambiental brasileira é mais alta
Para a senadora Tereza Cristina (PP-MS), que foi ministra da Agricultura no governo Bolsonaro, em vez de simplesmente esperar a contagem regressiva para vigorar a lei europeia, o Brasil tem o momento oportuno para promover o debate e demonstrar que, em termos ambientais, “a régua é muito mais alta aqui do que lá”.
Tereza Cristina é relatora do PL 2.088/2023, do senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), conhecido como Lei da Reciprocidade. A proposta diz que só devem ser disponibilizados no mercado brasileiro “bens e produtos originados de países que adotem e cumpram níveis de emissões de gases de efeito estufa iguais ou inferiores aos do Brasil” e que “cumpram padrões de proteção do meio ambiente compatíveis com as estabelecidas pela legislação brasileira”.
A senadora sul-matogrossense disse à Gazeta do Povo que ainda em maio deve acontecer uma primeira audiência, no Senado, para debater o projeto da Lei da Reciprocidade. A ideia é dar visibilidade ao assunto tanto no Congresso brasileiro quanto perante os formuladores das políticas europeias.
“Hoje isso está muito unilateral. Eles fizeram uma lei para a Europa e querem descer goela abaixo não só do Brasil, mas de outros países em desenvolvimento. Acho que podemos agregar até outros países que pensam como a gente”, diz Tereza Cristina.
Green Deal é criticado por dois pesos, duas medidas
Um exemplo de critérios contraditórios da política do Green Deal está nas áreas de preservação. Enquanto os agricultores europeus protestaram com tratores nas cidades porque não querem preservar 4% de suas terras, no Brasil os produtores protegem por lei de 20% a 80% da vegetação nativa das propriedades rurais.
Na Política Agrícola Comum (PAC), que trata apenas das regras dentro do bloco, a Comissão Europeia voltou atrás após a pressão dos tratoraços, e suspendeu, por exemplo, a obrigação do pousio – prática de deixar a terra descansar para recuperar o solo. Mas não há acenos de que vá afrouxar o rigor da lei antidesmatamento para parceiros comerciais.
“Os interesses são de mão dupla. Na área agrícola eles têm medo do Brasil. Eles querem taxar nossos produtos e, pior ainda, querem dizer que os produtos vêm de áreas de desmatamento, colocando tudo no mesmo balaio. O Brasil precisa realmente discutir o que quer e também colocar parâmetros para receber os produtos, não só europeus, mas como um espelho para importações de todos os países do mundo”, sublinha a senadora.
Esse “espelhamento” citado pela ex-ministra da Agricultura incluiria a verificação da pegada ambiental da energia utilizada nos produtos industriais. Enquanto a matriz elétrica brasileira em 2023 foi 93% renovável, na Europa esse índice ficou em 44%, praticamente metade, e ainda assim um recorde por lá.
Brasil poderia ter sua própria Taxa de Carbono na Fronteira
Fazer este comparativo para negociar melhor com os europeus é uma estratégia defendida pela Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove). “Deveríamos fazer alguma Taxa de Carbono na Fronteira pelo lado do conteúdo energético, dado que aqui no Brasil temos uma matriz mais limpa. Teríamos muita força para exigir uma matriz energética limpa dos produtos importados”, afirma André Nassar, presidente da Abiove.
Nas últimas semanas tem sido crescente, entre os europeus, a preocupação de que a maior parte da conta da lei antidesmatamento do Green Deal acabará sendo paga pelos consumidores do continente. Teme-se também que os processos fiquem, além de caros, excessivamente complicados, devido ao emaranhado de certificações exigidas.
Os fornecedores vão precisar implementar um sistema de rastreabilidade de ponta a ponta, tendo de comprovar desde a parcela de uma fazenda em que foi cultivado o grão de soja até a área específica de pasto em que foi alimentado o gado que deu origem à carne exportada.
“Na ponta, a Europa vai pagar mais caro por exigir mais”, disse Nicolay Mizulin, advogado especializado em comércio internacional do escritório Mayer Brown, em evento recente em São Paulo. Algumas cadeias, como a do café, estariam mais preparadas para atender às exigências, assim como os grandes produtores de soja. A tendência, segundo Mizulin, é que pequenos e médios acabem sendo os mais prejudicados.
Certificações podem encarecer produtos em 50%
Alerta similar já foi feito por Ingo Ploger, vice-presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), em entrevista à Gazeta do Povo: “Ao solicitarem uma série de certificações comprovando o não envolvimento no desmatamento, encarecerão produtos em até 50%, mesmo sabendo que muitos destes produtos já possuem certificações suficientes e de alta credibilidade. O Brasil, como o Mercosul, irá atender a estas exigências, pois ‘o cliente manda’. No entanto, sabemos que infelizmente eles [europeus] desconhecem que pagarão uma conta alta, sem atingir o objetivo divulgado”.
Faltando sete meses para implementação efetiva da lei antidesmatamento, a Comissão Europeia tem resistido às pressões para adiar, ou, pelo menos, afrouxar algumas regras tidas como impraticáveis no prazo estipulado. As pressões vêm de dentro e de fora do continente, por parte de governos, entidades privadas, agricultores, industriais e distribuidores. Em março, 20 dos 27 países-membros da UE pediram a Bruxelas o adiamento da lei e sua não aplicabilidade a países com baixo risco de desmatamento.
Também em março, 20 associações privadas europeias enviaram questionamentos ao comissário europeu do Meio ambiente, Virginijus Sinkevicius, manifestando “sérias preocupações quanto ao ritmo de preparação dos atos legislativos relacionados com o EUDR, os sistemas de informação obrigatórios, as orientações e esclarecimentos necessários para aplicação por parte dos operadores e comerciantes e a execução pelas autoridades competentes”.
Pallets e papel higiênico também serão rastreados?
Dentre dúvidas levantadas, algumas dão a dimensão da confusão que pode estar a caminho. “Em que medida os produtos relevantes que são utilizados exclusivamente para fins comerciais (por exemplo, as rodas de borracha, os pallets para o transporte de mercadorias comercializadas, o papel de impressão ou o papel higiênico na empresa) devem ser submetidos ao processo completo de diligência devida?”, foi um dos questionamentos endereçados à autoridade europeia.
Outra incerteza envolve a comprovação do cumprimento das leis trabalhistas. “Se um agricultor tiver contra si um processo fiscal, que não é específico das mercadorias a serem exportadas para a União Europeia, ou um processo laboral específico de outra exploração agrícola, esse agricultor seria desqualificado?”, perguntam as associações.
As dúvidas se estendem à armazenagem (“no armazém só é feita uma distinção por produto e não por fornecedor. Como devem ser tratadas as mercadorias provenientes da atividade de armazenamento?”); aos direitos de terceiros (“os direitos de comunidade se referem aos povos indígenas?”) e à preocupação com informações comerciais estratégicas (“como se garantirá que as informações sobre a concorrência permaneçam confidenciais em toda a cadeia de abastecimento?”).
Austríacos questionam migração para orgânicos
Outro pedido para adiar exigências da lei vinculada ao Green Deal foi formalizado em nota da delegação austríaca à Comissão Europeia, endossada pelas delegações finlandesa, italiana, polonesa, eslovaca, eslovena e sueca.
Um ponto sensível, e contraditório, estaria no objetivo de atingir 25% de produtos orgânicos na União Europeia até 2030. Na carta a Bruxelas, a Áustria alerta que a conversão dos cultivos convencionais para orgânicos cria um óbvio conflito de interesses envolvendo os criadores de gado nos estados-membros ricos em florestas, uma vez que as regras dos orgânicos exigem áreas de pastagem maiores.
Além disso, a preferência aos orgânicos conflita com a meta europeia de incentivar o cultivo de plantas proteicas, especialmente a soja. “O esforço burocrático necessário resultaria em uma redução drástica no cultivo de soja na UE e até mesmo aumentaria a dependência de importações. Portanto, exigimos uma revisão do texto legislativo, reduzindo a carga administrativa, a fim de permitir práticas agrícolas sustentáveis”, argumentam os representantes de Áustria, Finlândia, Itália, Polônia, Eslováquia, Eslovênia e Suécia.
Por enquanto, sem sinal de concessões
Apesar dos apelos, até agora a única concessão de Bruxelas foi adiar o início da classificação de risco dos países para desmatamento em baixo, médio e alto. Como o sistema não ficaria pronto até o fim do ano, a decisão foi classificar a todos, de saída, como risco-padrão ou médio.
O comissário europeu para o Meio Ambiente não tem demonstrado abertura para novas concessões. “Essa legislação não está surgindo agora, vinda de lugar nenhum”, disse Sinkevicius durante visita à Costa do Marfim, no mês passado. Ele acrescentou que os governos e fornecedores tiveram quase dois anos para se prepararem.
A senadora Teresa Cristina acredita que essa aparente inflexibilidade poderá ser revertida. ”Na hora em que a coisa ficar mais estruturada, que a discussão ficar mais aprofundada, com certeza eles [europeus] vão querer conversar com a gente”, prevê. Para tanto, é preciso começar o debate. “Precisamos mostrar nosso Código Florestal, que eles desconhecem. Eles vivem dizendo que não temos nada aqui, quando a gente tem muito, muito mais do que eles. A régua é muito mais alta aqui do que lá”, assegura a senadora.
Eleições no Parlamento Europeu podem mudar o foco ambiental
Em junho haverá novas eleições para o Parlamento Europeu. Uma análise de cenário do Deutsche Bank prevê que haverá uma guinada à direita na ocupação dos assentos, mas com boa probabilidade de um coalizão centrista ainda se mantendo como maioria. A nova legislatura europeia poderá, diz o banco alemão, mudar o foco para parcerias globais, envolvendo matérias-primas críticas e “acordos verdes setoriais”.
Pode ser a deixa para abrir uma frente de negociação com o Brasil e outros países descontentes com os termos da lei antidesmatamento. A primeira audiência pública do Senado sobre a Lei da Reciprocidade está marcada para o dia 22 de maio.