Oba! Hoje é dia de levar um tapa na cara em frente ao STF
(Paulo Polzonoff Jr., publicado no jornal Gazeta do Povo em 23 de maio de 2024)
Todos os dias, antes mesmo de o sol raiar no Planalto Central, uma fila se forma na Praça dos Três Poderes. São cidadãos de todos as origens e moldes, uns trazidos à força pela Polícia Federal, alguns voluntários, ansiosos por se sujeitarem aos poderosos, e outros tantos desavisados, do tipo que entra na fila só pelo prazer de descobrir o que o aguarda no final. Sabe como é o brasileiro.
Às vezes a fila desemboca no Congresso Nacional. Às vezes, no Palácio do Planalto. Ultimamente, porém, tem sido mais comum a fila dar na sede do Supremo Tribunal Federal. Onde, por sinal, neste exato momento estão perfilados os excelentíssimos Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes.
Toca o Hino Nacional e tem início a cerimônia cínica do hasteamento do pavilhão que ainda é verde, amarelo, azul e branco, mas a cada dia que passa parece mais vermelho. Na fila, uns tantos patriotas levam a mão ao peito, enquanto a maioria entoa desafinadamente o virundum que não compreendem. Depois do “Pátria amada, Brasil!”, ecoam pelo boqueirão de concreto by Niemeyer© tímidas palmas. Vai começar o ritual.
O primeiro da fila é um senhor de 90 anos que, naquele longínquo 2018, ficou até de madrugada assistindo aos telejornais que exibiam a imagem de Marcelo Odebrecht confessando a participação no esquema de corrupção. Com a ajuda dos sempre prestativos militares, ele sobe uma escada e se posiciona diante de Dias Toffoli. “O Marcelo é inocente! A corrupção não existiu! Foi tudo uma ilusão coletiva!”, diz o ministro antes de esbofetear a cara do sujeito.
Na fila, os petistas aplaudem, como se não fossem eles os próximos destinatários do sopapo supremo. Por falar em fila, além de petistas e gente honesta, há nela pobres e ricos e muitos classes-médias que, ao sabor das conveniências e das possíveis vantagens, se consideram ora pobres, ora ricos. Há sãos e doentes, tanto da cabeça quanto do pé. Há gordos e magros, aqueles mais do que estes. Há brancos e negros e amarelos. Deve ser alguma coisa no fígado. Há cabeludos e carecas e, por falar nisso, chegou a minha vez.
Sommelier de tapa na cara
O tapa de Dias Toffoli tem corpo médio e levemente ácido, com evidentes notas de fidelidade partidária e retrogosto de indignação. O movimento começa com a flexão do músculo moral, que se distende subitamente, de modo a surpreender o cidadão com um tapa que dói tanto no corpo quanto na alma e no intelecto. Não à toa, o tapa de Toffoli recebeu 4 estrelas da renomada revista Vinum acre, além de uma crítica elogiosa no periódico “O Amigo do Amigo do Meu Pai”.
Com a bochecha ardendo e o insulto antidemocrático entalado na garganta, dou um passo trêmulo para a direita e me vejo diante da ministra Cármen Lúcia. “Calaboca já morreu, quem manda na sua boca agora sou eu!”, sussurrogrita ela naquela combinação inconfundível de voz fanha e sotaque mineirin. Antes que eu possa reagir, porém, levo o tapa, mas é um tapa tão leve e tão débil quanto a democracia excepcionalíssima da ministra. Tanto que nem percebo e fico ali assim ó ó com cara de bundão.
É então que me puxa pela camisa um militar e me põe diante de Alexandre de Moraes. Penso em fazer uma piada com nossas calvas gêmeas, mas nem dá tempo. Animado que está com o prazeroso ritual de dar rotineiras lapadas na fuça do pobre cidadão, o ministro Alexandre de Moraes abre um sorriso que não sei se é:
( ) cruel,
( ) mau,
( ) tirano,
( ) vil,
( ) desumano,
( ) desalmado ou
( ) maldito. E diz: “Inimigos da democracia eu prendo mesmo. Não me importo que sejam velhos ou pacientes com câncer terminal”. E… PLAFT. Ou teria sido TABLEFT? Não sei. Só sei que percebi notas de sadismo em meio ao corpo totalitário característico da cepa Summun perversitas.
Ainda zonzo, tento agradecer ao ministro pela crônica (e úlcera nervosa) nossa de cada dia, mas não consigo. Ao descer as escadas do palco, porém, vislumbro uma vez mais a fila que se prolonga Brasília afora, desce por Goiás, atravessa aquele rabicó de Minas, cruza São Paulo, Paraná e Santa Catarina, e avança até o Chuí. Sem alternativa, passo um creme analgésico no rosto e, com o maior dos sorrisos na cara adormecida, entro na fila mais uma vez.
“Dizem que amanhã o tabefe é do Eduardo Leite, tchê!”, me diz o gaúcho à minha frente. “Que nada! Tu tá trienganado, guri. O tapa amanhã é do Paulo Pimenta, tchê!”, discorda outro. Tem início um entrevero e eu só ali, a cabeça baixa num estupor impotente, dizendo de mim para mim:
“Oba”.