(J.R. Guzzo, publicado no jornal Gazeta do Povo em 03 de junho de 2024)
A ciência do direito deve ao ministro Alexandre de Moraes, com a coautoria dos seus colegas do STF, a criação do flagrante perpétuo. Deve, também, a prisão preventiva por tempo indeterminado. Deve o inquérito policial que “só acaba quando termina”. Deve à elevação do Supremo Tribunal do país à categoria de maior vara penal do mundo, com 2 mil processos pelas últimas contas, como se admira publicamente o próprio ministro – diante dos aplausos e da bem-aventurança da esquerda, cada vez mais encantada com essa criatividade na defesa da democracia.
Moraes vem agora com mais uma contribuição – ou pelo menos um up grade – nas técnicas jurídicas de enfrentamento (palavra da moda, hoje) da extrema direita: o magistrado “quatro-em-um”, com opção para o uso “dois-em-um”. É a autoridade multiuso que preenche simultaneamente as funções de vítima, polícia, promotor e juiz, tudo num mesmo caso. Sua variante é o dois-em-um, quando os serviços do promotor e do juiz são terceirizados para gente de estrita confiança. Parece um grande negócio para os interesses da administração: o Estado executa quatro tarefas, ou pelo menos duas, mas o público tem de pagar por um funcionário só.
O ministro Moraes acaba de desfechar mais uma operação dessas, na modalidade “dupla premium” – ou seja, duas funções no mesmo caso. Mandou prender dois suspeitos de crimes contra a democracia, citando a si mesmo como vítima de ambos. No entendimento leigo, dá a impressão de ser aplicação de justiça pelas próprias mãos, proibida no artigo 345 do Código Penal Brasileiro como crime de “exercício arbitrário das próprias razões”.
No entendimento do STF, é uma autoridade dando voz de prisão a um possível infrator das leis penais. De fato, não foi a polícia que descobriu uma trama contra o ministro e pediu as devidas providências, mas é o ministro quem ficou desconfiado com os suspeitos – e mandou a Polícia Federal prender os dois. Cuidou-se, no caso, de mandar o Procurador-Geral da República assinar a papelada legal que se espera dele. Moraes também se declarou suspeito para ser, ele próprio, o juiz-relator. Mas não muda nada.
Se Alexandre de Moraes e o resto do STF determinarem ao atual Procurador-Geral da República a prisão do Coringa, ou do Doutor Silvana, ele apresenta o pedido na hora – de modo que a função de promotor independente não existe para efeitos práticos.
No caso, ele pediu e Moraes, de próprio punho, expediu a ordem de prisão. O fato de ele não ser o juiz deste caso também não tem nada a ver. E daí? Não passa pela cabeça de nenhum dos seus dez colegas contrariarem o ministro Moraes em nada; se o juiz é ele ou não dá na mesma para os acusados. Eles teriam, segundo as denúncias de Moraes, indicado a “intenção de alterar o curso da justiça”; pelo que foi dito, haveria também suspeitas de ameaças a seus familiares. Nem a OAB gostou. “A lei brasileira não permite que a vítima julgue o próprio caso”, disse o presidente da Ordem. O STF, claro, vai dizer que não é assim, pois o ministro se declarou suspeito. Mas, é exatamente assim.