(Carlos Graieb, publicado no portal O Antagonista em 04 de junho de 2024)
Na década de 1970, o ator Charles Bronson estrelou uma série de filmes policiais trash, chamada Desejo de Matar.
Lembrei do título ao verificar que a Primeira Turma do STF decidiu processar o senador Sergio Moro por calúnia, em razão de uma piada proferida numa festa junina. O alvo da piada era o ministro Gilmar Mendes.
Não digo que os ministros queiram sair por aí atirando em desafetos, visto que são almas ilustradas, sublimes. Mas desejo de punir, ah, isso eles têm.
No Papo Antagonista desta segunda-feira (3), expressei a opinião de que o STF arquivaria sumariamente esse caso. Não poderia estar mais enganado: eles acolheram a denúncia por unanimidade.
Despautério
Felipe Moura Brasil já expôs em detalhes o despautério dessa ação.
Para começar, os fatos aconteceram em 2022, quando Moro ainda não era senador. Ele era um cidadão comum, que não deveria estar sendo julgado agora pelo STF. Mas a ideia de juízo natural é cada vez mais esvaziada pela Corte. O STF traz para si o que deseja julgar. Se não gostou, vá reclamar com o papa.
Quanto à suposta calúnia, a frase foi dita de passagem, num contexto informal e privado, em tom de brincadeira.
Não foi gravada, editada ou muito menos divulgada pelo próprio Moro.
Tampouco se referia a qualquer decisão específica do ministro Gilmar Mendes, mas era condizente com aquele jogo típico de festas de São João, em que a pessoa é levada para a cadeia e só pode sair dali pagando um beijo para uma paquera ou algumas moedas que ajudam a cobrir as despesas com a paçoca e o quentão.
É preciso forçar o tipo penal da calúnia para que esses fatos se amoldem a ele. É preciso também estar diante de um grupo de juízes com sensibilidade à flor da pele, tomados pelo desejo de punir.
Sergio Moro começou a ser punido hoje. Daqui em diante, serão meses de estresse jurídico. Se for condenado no final, poderá perder também o mandato político. Talvez seja inocentado, mas previsões são inúteis quando se trata do STF.
Investigação inconclusiva
Enquanto assistimos à estreia do filme Moro, Desejo de Punir 2 já está em produção. É o caso da família Mantovani, que se enredou num lastimável entrevero com o ministro Alexandre de Moraes e sua família, num aeroporto italiano.
A ideia de acossar autoridades quando estão com suas famílias em atividades privadas precisa ser condenada. Não é uma forma legítima de exercer a cidadania.
Se a abordagem descamba para as agressões físicas ou para ofensa verbal, pode obviamente ser objeto de ações penais. Mas é preciso que a investigação policial seja capaz de descrever com clareza os acontecimentos para que isso aconteça.
A Polícia Federal brasileira não conseguiu fazer isso no episódio que envolveu Moraes. Por isso, num primeiro momento, optou por não indiciar nenhum dos três integrantes da família Mantovani.
Mudança de entendimento
Alexandre de Moraes não gostou. Seu colega Dias Toffoli, relator do caso, mandou que as investigações fossem retomadas – o que aconteceu, com um novo delegado à frente do inquérito.
Nesta segunda, a PF reverteu seu entendimento inicial e promoveu o indiciamento dos três cidadãos por calúnia. Mesmo sem dispor de áudios da desavença, ou sequer transcrições feitas com base em leitura labial, o relatório afirma que a versão da família de Moraes é “sem sombra de dúvida, a que deve prevalecer”.
Segundo o jornalista Igor Gadelha, o delegado Thiago Rezende ganhou um cargo na Europa dias antes de assinar o relatório.
Um dos aspectos mais espantosos desse inquérito é que mensagens antigas encontradas no celular de um dos indiciados com críticas ao ministro do STF foram usadas não apenas como prova contra esse indivíduo, mas contra toda a família.
Direito penal pré-moderno
Essa é uma forma pré-moderna de conceber o direito penal: o crime de um se estende a todo o clã. O grande Cesare Beccaria, filósofo do século XVIII que trabalhou para tirar o direito penal das trevas e pode ser considerado o pai espiritual do garantismo, deve estar se contorcendo na tumba.
Aliás, eis aí uma boa indagação: onde estão os barões do garantismo, os advogados milionários de esquerda, diante desses episódios? Quando vão sair às ruas com cartazes, dizendo que o STF e os policiais e procuradores que trabalham próximos ao STF precisam aplicar os tipos penais com mais cautela?
Vamos repetir que não se trata aqui de passar pano para quem opta pela incivilidade na política. Mas o STF cria uma atmosfera de intimidação ao mostrar-se imbuído do desejo de punir a qualquer custo – e isso não faz bem à democracia.