A troca de zap entre ministros do STF
(Felipe Moura Brasil, publicado no portal O Antagonista em 27 de junho de 2024)
Passou despercebido na imprensa amiga, mas a combinação entre ministros do Supremo Tribunal Federal foi confessada duas vezes no julgamento sobre a descriminalização da maconha:
Dias Toffoli disse ter enviado “áudio” a “Vossa Excelência” sobre seu voto:
“Foi aí que muitas pessoas interpretaram o meu voto como criminalizante, pelo fato de eu não entrar na [questão da] quantidade. Muito pelo contrário. Eu até, em mensagem a Vossa Excelência, hoje pela manhã, de áudio, eu disse: o meu [voto] é o mais radical de todos. O meu [voto] é descriminalizante para todas as drogas no que diz respeito a usuários.”
Luis Roberto Barroso, atual presidente do STF, anunciou que a definição da quantidade para distinguir tráfico e consumo veio de “acordo interno”:
“Nós havíamos chegado a um acordo interno, que precisa evidentemente ser ratificado na sessão pública, de ficarmos a um meio caminho [ou seja, entre as demais sugestões de 25 ou 60 gramas, aventadas na Corte] de 40 gramas, que é a quantidade adotada no Uruguai, que é a experiência [de] que nós temos notícia.”
Imagine se juízes da Lava Jato, incluindo os desembargadores agora afastados do TRF-4 pelo Conselho Nacional de Justiça, tivessem falado de “acordo interno” e “mensagem de áudio” sobre os próprios votos, em julgamentos de políticos e empresários investigados por corrupção. As falas teriam passado batido?
O STF virou cartório?
Barroso ainda tentou afetar preocupação com a transparência, alegando que o acordo interno “precisa evidentemente ser ratificado na sessão pública”. O STF, por acaso, virou cartório? O Supremo é um almoxarifado de luxo, onde se dá carimbo formal? A sessão pública, na verdade, deveria ser o local de argumentação e debate, não de ratificação de articulações políticas de bastidor, feitas longe dos olhos da sociedade.
Mas não é de hoje que ministros do Supremo combinam votos em privado.
Qual é o histórico de troca de mensagens no STF?
Em 23 de agosto de 2007, dois anos antes de o WhatsApp chegar ao Brasil, O Globo circulou com uma bomba na primeira página da edição impressa: Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia foram flagrados combinando votos pelo sistema interno de troca de mensagens, na sessão em que era analisada a denúncia contra os 40 acusados do mensalão do PT.
“A história dessa reportagem começou dois dias antes de ser publicada. A repórter Carolina Brígido comentou na redação, quando discutíamos a cobertura a ser dada ao julgamento do mensalão, que os ministros do STF tinham o hábito de ficar consultando sites e trocar e-mails durante as sessões em plenário. O coordenador de Fotografia, Sérgio Marques, orientou então o fotógrafo Roberto Stuckert Filho a mirar as lentes para as telas dos computadores dos ministros. Quando o material chegou à redação, viu-se que as conversas não eram despretensiosas, como imaginávamos. Quando as reconstituímos, vimos que havia ali trechos em que os votos eram combinados”, lembrou Sérgio Fadul, chefe de Redação da sucursal de Brasília, em matéria sobre o prêmio Esso de jornalismo daquele ano, vencido pelo Globo em razão do flagrante.
Lewandowski foi flagrado duas vezes em uma semana?
Uma semana depois da reportagem, em 30 de agosto de 2007, a Folha revelou outro flagrante envolvendo Lewandowski: em conversa telefônica na noite do dia 28, ele “reclamou de suposta interferência da imprensa no resultado do julgamento que decidiu pela abertura de ação penal contra os 40 acusados” do mensalão.
Segundo o então ministro do STF indicado por Lula, “a tendência era amaciar para o [petista José] Dirceu”, mas “a imprensa acuou o Supremo”, “todo mundo votou com a faca no pescoço”. Lewandowski foi o único a divergir do relator, Joaquim Barbosa, quanto à imputação do crime de formação de quadrilha, registrou a repórter Vera Magalhães em sua matéria.
Qual foi a reação do STF aos flagrantes de conversas de ministros?
“Desde então, o tribunal cercou-se de cuidados”, escreveu Brígido no Globo, em 2012.
“Uma das providências foi impedir que fotógrafos e cinegrafistas transitassem livremente pelo plenário. Nesta quinta-feira [1 de agosto daquele ano], eles podem ocupar uma área restrita o fundo do recinto. Quando viram suas mensagens publicadas no jornal, alguns ministros acabaram mudando a linha do voto e réus admitiram mais tarde que a divulgação mudou o rumo da sessão.
Após o episódio, boa parte dos ministros se tornou adepta dos bilhetinhos escritos em papel. Na época, a presidente da Corte era a hoje aposentada ministra Ellen Gracie.
Com a posse de Gilmar Mendes, veio a restrição do espaço destinado aos profissionais de imagem. Foi quando os ministros voltaram a usar o sistema interno de troca de mensagens.”
Isso mesmo: a decisão que garantiu a volta da troca de mensagens entre ministros do STF, com a restrição, ou melhor, retaliação à imprensa então vigilante, veio quando a presidência da Corte passou a ser exercida, em 2008, por Gilmar, o mesmo que vocifera contra a Lava Jato com base em ilações, jamais confirmadas pelo devido processo legal, sobre o conteúdo não autenticado de mensagens roubadas.
A imprensa deixou de ser vigilante?
Bons tempos aqueles em que as combinações no STF não passavam despercebidas, a imprensa acuava o Supremo e impelia os ministros a fazerem o certo, votando “com a faca no pescoço” contra corruptos poderosos.
Hoje, todos estão impunes e as confissões de combinação não ganham nem nota de rodapé. Mas os brasileiros já podem ficar tranquilos, queimando 40 gramas de maconha, ou seja, de 40 a 133 baseados, até a última ponta, porque “nós temos notícia” de que no Uruguai foi assim.