Com ‘balcão de negócios do TCU’, governo Lula salva bilhões dos irmãos Batista
Revista Piauí
O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, fechou um acordo que beneficia em bilhões de reais a Âmbar Energia, empresa do grupo J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista. A empresa foi contratada em 2021 para construir quatro usinas termelétricas e gerar energia, num momento em que o Brasil estava sob risco de uma crise hídrica. O serviço, porém, nunca foi entregue – o que, em tese, deveria levar à rescisão dos contratos e a multas da ordem de 6 bilhões de reais. Mas não foi o que aconteceu: na onda de renegociações promovida pelo governo Lula com apoio do Tribunal de Contas da União (TCU), a Âmbar conseguiu manter os contratos, pelos quais receberá 9,4 bilhões de reais. A multa pelo descumprimento será de apenas 1,1 bilhão de reais. A piauí teve acesso ao despacho de Silveira, datado de 18 de abril de 2024 e mantido sob sigilo.
As bases para o acordo foram costuradas na SecexConsenso, secretaria criada pelo presidente do TCU, Bruno Dantas, para encontrar soluções consensuais entre o governo e empresas. Na prática, a secretaria transformou o tribunal num superbalcão de negócios, por onde passam bilhões de reais.
Os problemas com a Âmbar começaram em 2022. Como o leilão promovido pelo governo era emergencial, as empresas vencedoras deveriam começar a produzir energia em maio, um prazo exíguo, com tolerância para atrasos até agosto. Mais do que isso, o contrato seria rescindido. A Âmbar não havia participado do leilão feito pelo governo, mas poucos meses depois comprou por 344 milhões de reais o direito de gerar energia no lugar de outra empresa, a Evolution Power Partners (EPP). Os quatro contratos – um para cada usina a ser construída – somavam 18,7 bilhões de reais.
Em vez de construir do zero, a Âmbar optou por arrendar usinas (investiu nisso 659 milhões de reais). Ainda assim, não conseguiu entrar em operação a tempo. Passou a ser multada, não pagou e, em agosto, no fim do prazo máximo, sua credencial para operar foi cassada pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). A empresa, então, pediu permissão para gerar a energia a partir de uma térmica antiga, a UTE Cuiabá, em vez de entregar as novas usinas. Uma decisão da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) chegou a autorizar esse pedido, mas logo depois foi revista, pois os contratos eram claros: a energia deveria ser gerada por novas térmicas, e não antigas.
O diretor da Aneel que costurou o entendimento favorável à Âmbar, depois revisto, era Efrain Cruz. Em março de 2023, ele foi nomeado secretário executivo do Ministério de Minas e Energia, tornando-se, com isso, o número 2 do ministro Alexandre Silveira. No fim daquele mês, Silveira encaminhou ao TCU o pedido de solução consensual entre a Âmbar, a Aneel e o governo federal.
Depois de uma primeira manifestação favorável, os técnicos do tribunal recomendaram a rejeição do acordo, apontando que a empresa não cumpria os requisitos necessários para o fornecimento de energia (as usinas tinham que fornecer energia por 96 horas ininterruptas, mas não aguentaram o tranco). Os auditores constataram a “insuficiência” do serviço prestado pela Âmbar e propuseram que o acordo fosse arquivado. O representante do Ministério Público no TCU, em seu parecer, disse que o resultado do teste fora “um evidente fracasso”. Sem a concordância dos auditores, não havia consenso – e, sem consenso, o acordo não poderia ser aprovado, segundo as regras do próprio TCU.
Foi quando o secretário da SecexConsenso, Nicola Khoury, surgiu com uma solução inovadora: ele mudou o conceito de consenso. Entendeu que um acordo não deveria depender da concordância dos auditores. O novo entendimento foi introduzido na instrução normativa que criou a SecexConsenso, deixando claro que a opinião dos auditores era apenas isso: uma opinião. O que valia era o plenário.
Dali em diante, os processos na SecexConsenso deixaram de exigir consenso. O casuísmo foi tão evidente que o relator Benjamin Zymler, embora quisesse aprovar o acordo com a Âmbar, optou por não fazê-lo. Alegou que a mudança só valeria para casos futuros. O processo, com isso, foi arquivado. No julgamento, no entanto, Zymler deixou claro ter “simpatia” pelo acordo costurado pelo governo: “Se você me perguntar se eu tenho uma simpatia por essa proposta, sim, eu tenho uma simpatia por essa proposta.” Sua declaração foi endossada pelo ministro Antonio Anastasia, ex-senador por Minas Gerais, que manifestou “adesão à ponderação e à simpatia manifestada pelo ministro Zymler”. O único ministro a se opor foi Walton Alencar Rodrigues, que viu “problemas insuperáveis quanto ao mérito” do contrato (o vídeo da sessão foi excluído pelo TCU, mas pode ser acessado aqui).
Logo ficou claro o significado da simpatia geral: apesar do arquivamento, os ministros resolveram dizer ao governo que nada o impedia de seguir em frente com o acordo que beneficiava a empresa dos Batista, mesmo sem o aval do TCU. “Realmente, todo esse processo é surpreendente”, espantou- se Luiz Eduardo Barata, presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia, em entrevista à Piauí. “E, além de surpreendente, é altamente lesivo aos consumidores brasileiros de energia.”
Diante da sinalização positiva do TCU, Alexandre Silveira não perdeu tempo. Notificado da decisão do tribunal, o ministro fechou o arranjo com a Âmbar sem aguardar manifestação da Aneel, responsável por analisar as medidas em caso de descumprimento de contratos. A notificação chegou no dia 15 de abril ao Ministério de Minas e Energia. Dois dias depois, às 17h36, o texto do acordo chegou à Consultoria Jurídica da Advocacia-Geral da União (AGU) e, 56 minutos mais tarde, estava aprovado pelo consultor José Affonso de Albuquerque Netto. Na manhã do dia seguinte, o ministro assinou o despacho. Um mês depois, a Aneel carimbou o acordo. O ministério e a agência, então, enviaram a papelada ao TCU.
Se o tribunal concordar, ou se não se manifestar, o acordo entrará em vigor no dia 22 de julho.
Pelo acordo, em vez de operar as quatro termelétricas previstas inicialmente, a Âmbar poderá optar pela antiga térmica de Cuiabá – o que, por ironia, era a solução que Efrain Cruz, então secretário de Minas e Energia, havia proposto tempos antes e que acabara sendo rejeitada pelo colegiado da Aneel. Além disso, a Âmbar receberá multa de 1,1 bilhão pelo atraso, seus contratos serão ampliados de 44 para 88 meses e o valor total será reduzido de 18,7 para 9,4 bilhões de reais, porque a empresa deixará de ser obrigada a gerar energia ininterruptamente, passando a fazê-lo apenas sob demanda.
No despacho, o ministro Alexandre Silveira citou pareceres favoráveis ao acordo, mas ignorou os problemas apontados pelos auditores do TCU. Argumentou que não selar o acordo “seria incorrer no risco futuro de estar confrontando os votos dos senhores ministros do TCU e assumindo o ônus de contrariar pareceres técnicos e jurídicos (da Aneel, MME, AGU e do próprio TCU)”. Alegou, além disso, que o acordo era uma alternativa melhor do que a eventual judicialização por parte da Âmbar: “Portanto”, escreveu Silveira, “não nos parece restar outra alternativa a não ser firmar o acordo, inclusive para não penalizar ainda mais os consumidores de energia, diante de uma praticamente certa demanda judicial, com risco elevado, que virá caso o cenário de indefinições perdure ainda mais.”
Em nota enviada à Piauí, a Âmbar defendeu a lisura do negócio: “As vantagens de um acordo são tão significativas que o próprio TCU recomendou, em plenário, que as partes buscassem o consenso direto para evitar a judicialização.” No fim, tudo saiu bem para a empresa: descumpriu o contrato, pagou multas de menos de 6% sobre o valor do negócio, não ergueu nenhuma usina e vai embolsar 9,4 bilhões de reais – com a garantia de que nenhum tribunal de contas complicará sua vida.
O acordo bilionário é um entre vários que foram costurados pelo TCU nos últimos meses, sob a liderança de Bruno Dantas.