‘Pais de pet’: a perigosa moda da humanização de animais domésticos
(Gabriel Sestrem, publicado no jornal Gazeta do Povo em 29 de setembro de 2024)
Dias atrás vi uma cena que me fez pensar em como pode ser perigosa a cultura, aparentemente doce e inofensiva, dos “pais de pet” – termo que virou moda há alguns anos e descreve pessoas que tratam seus animais de estimação como se fossem filhos, dando a eles um papel quase humano.
Mas antes quero fazer uma ressalva: o objetivo aqui não é criticar quem cuida bem dos animais, o que é algo muito louvável. Inclusive ter animais em casa convivendo com crianças é muito positivo para os pequenos. O que quero destacar é o quanto a cultura da humanização dos pets revela um lado egoísta e irresponsável que pode levar a consequências drásticas, como mostro na história a seguir.
Recentemente eu e minha esposa saímos para levar nosso filho a uma praça com um parquinho perto de casa. Enquanto ele pulava de um lado para o outro, uma menina de no máximo três anos passou sozinha correndo na calçada, a poucos metros de nós, indo direto para a avenida mais movimentada do bairro.
Vendo aquilo, olhei para o lado esperando encontrar uma mãe ou um pai em uma corrida frenética para alcançar a criança antes que ela chegasse à avenida. Como não apareceu ninguém, instintivamente me virei para correr e tentar evitar o pior, mas minha esposa já tinha saído em disparada e conseguiu alcançar a menina centímetros antes de terminar a calçada.
Procurei novamente por uma mãe ou um pai preocupado com a criança, mas não apareceu ninguém.
Do outro lado, minha esposa vinha com a menina no colo e os olhos arregalados, segurando um choro absolutamente compreensível – uma criança frágil, quase da idade do nosso filho, tinha corrido um risco enorme de ser atropelada bem na nossa frente.
Naquele momento apareceu uma outra mãe: tranquila, a passos lentos ensaiando um sorriso de quem tem certa culpa, mas nem tanto. Ela trazia no colo um cão raça Lhasa Apso com uma pelagem sedosa e brilhante. Nos disse que o cachorro havia corrido para um lado e ela foi atrás, com medo de que fosse atropelado, por isso não conseguiu ver a filha, que saiu em disparada para o outro lado.
Vendo as reações opostas daquelas duas mulheres, dois pensamentos me vieram à mente. O primeiro: escolhi a pessoa certa para ser mãe dos meus filhos. Segundo: dar a pets tratamento igual ou melhor do que seres humanos pode ter sérias consequências.
O que a “humanização dos pets” tem a ver com paternidade?
A cultura dos chamados pais de pet tem a ver com evitar o que é difícil, incômodo e que exige sacrifícios – tem a ver também com uma fuga dos contratempos próprios do relacionamento humano, que exige dedicação, comprometimento e desprendimento. Veja que é praticamente impossível exercer bem a paternidade sem desenvolver esses atributos.
Perceba que não estou me referindo aos tutores de animais domésticos em geral, mas sim a uma forma distorcida de enxergar a diferença entre a vida humana e a animal.
Em uma pesquisa recente do Pew Research Center com donos de animais de estimação norte-americanos, 97% declararam que consideram esses animais como “família”, e 51% foram além: cães, gatos e outros animais eram percebidos, no núcleo familiar, como mais um membro “humano”, em igualdade de condições com os demais.
A mentalidade de humanização dos animais domésticos com frequência é acompanhada de uma certa dificuldade de enxergar o valor da conexão profunda com as pessoas, que são naturalmente repletas de limitações e demandam muito mais paciência e dedicação.
Pets costumam ser sempre dóceis, não dão tanto trabalho quanto pessoas, não criam grandes problemas e, se tudo der errado, é mais fácil se desfazer doando a alguém. Muito diferente de um filho, não?
E justamente por isso tem sido tão comum ver pessoas abrindo mão da paternidade e maternidade para se tornarem “pais de pet” na tentativa de “preencher o espaço” com um animal de estimação.
É claro que há motivos diferentes que podem levar um casal a decidir por não ter filhos. Mas deixando de lado as exceções, isso diz muito sobre valores egoístas que estão em alta na nossa sociedade e que são tão danosos, principalmente às próximas gerações.
Um animal de estimação não vai te acordar de madrugada porque está com febre ou teve um pesadelo; não vai demandar aquele tempo que sobrou ao final do dia para ajudar a fazer a lição de casa; não vai precisar de material escolar e uniformes novos todos os anos…
Um pet não precisa de educação formal, não enfrenta desafios emocionais e sociais complexos e jamais vai requerer o nível de comprometimento e responsabilidade que a criação de um ser humano envolve.
E com a moda da humanização dos pets cada vez mais levada a sério, como sociedade vamos perdendo a capacidade de criar grandes coisas que exigem sacrifício, de enfrentar desafios, de criar vínculos fortes, de assumir grandes responsabilidades, de tolerar os desafios das relações interpessoais próximas e, muitas vezes, de desfrutar da maior de todas as bençãos que é ter alguém para chamar de filho.
Não há forma de crescimento pessoal que seja equivalente a um homem e uma mulher que decidem moldar seu comportamento diariamente para serem melhores pais e mães.
O preço de normalizar a cultura dos pais de pet
De um lado tornou-se muito comum o discurso de que o mundo anda perigoso demais, que o custo de vida para criar uma criança está muito alto, ou que ter filhos vai prejudicar a carreira ou os sonhos e por isso não vale mais a pena. E do outro há aqueles que têm filhos, mas mantêm essa visão egoísta própria dos “pais de pet”, como é o caso da história que contei há pouco. Qual é o impacto na mente de uma criança ao saber que sua vida tem o mesmo valor do que a de um cachorro?
Em resumo, o problema não está em ter animais domésticos, que merecem cuidado e carinho, mas sim em dar a eles o mesmo valor que a vida humana. Quanto mais nos acostumamos com a humanização dos animais, mais normalizamos a desumanização de pessoas. E isso pode ter consequências irreparáveis.