Em tempos remotos, Israel esteve sob o comando de juízes. Guiadas por Moisés rumo à Terra Prometida, e lá assentadas por Josué, as doze tribos dos hebreus, após a morte dos líderes carismáticos que as haviam conduzido da escravidão no Egito à fartura de Canaã, não tardaram a descumprir a lei mosaica. Diante da reiterada adoração a ídolos, conduta tida pelas normas então vigentes como violação à aliança entre Israel e o Senhor, conta a Bíblia que, no ardor da ira, Deus entregou o povo por ele eleito à sanha de seus vizinhos invasores. A cada período de opressão, os israelitas rogavam socorro ao seu Senhor, e este, compadecido, levantava um juiz para salvá-los e assegurar períodos de paz e estabilidade. Morto o líder, Israel afundava novamente no caos, tornando a tombar sob o jugo de estrangeiros.
Os juízes hebreus da antiguidade desempenhavam todas as funções de mando e, em particular, as de organização e condução de manobras militares contra os povos inimigos. A escolha dos juízes era atribuída a desígnios divinos, e, por isso, sua legitimidade provinha da crença, partilhada por toda uma população, de que o espírito do Senhor era efetivamente capaz de transformar indivíduos até então anônimos em comandantes de tropas exitosas. Como exemplos, pensemos em Débora, profetisa que, apesar da condição feminina em uma sociedade de varões, foi a juíza responsável por tramar a morte do principal general cananeu, e em Gideão, membro do clã mais fraco de sua tribo, e, ainda assim, capaz de conduzir uma tropa de apenas 300 homens rumo à vitória retumbante sobre os midianitas.
Na contemporaneidade de um belo país tropical, juízes de cúpula também concentram, em suas mãos, todas as atribuições de mando. Embora as normas lá vigentes estipulem uma clara separação entre os poderes, esses extravagantes senhores insistem em ditar leis e políticas públicas sob a desculpa de que sua atuação um tanto “inovadora” se destinaria a suprir a inércia de um legislativo moroso. Em certas situações, chegam a se comportar como se estivessem à testa de forças militares ao conjugarem o verbo “derrotar” em alusão a seus oponentes políticos e, ainda, ao prenderem figurões fardados sem observância aos ritos aplicáveis, como se contabilizassem baixas em campos de batalha. Escolhidos e nomeados a partir de critérios meramente politiqueiros, os intrigantes juízes tropicais não se legitimam por qualquer crença popular na legalidade de seu processo de designação, por seu carisma pessoal ou por uma fidelidade tradicional, cada vez mais posta em xeque. Ao que tudo indica, somente se mantêm no poder graças à covardia das autoridades não-togadas e ao terror disseminado por uma série de prisões políticas.
Nos relatos das façanhas dos antigos juízes de Israel, houve virtudes, assim como vícios e excessos. Lembremo-nos, por exemplo, do valente Gideão, que, após o triunfo militar, pediu aos israelitas uma doação de despojos de guerra para uso pessoal e usou o butim para confeccionar uma espécie de manto sacerdotal, logo transformado em objeto de idolatria por sua comunidade. Apesar de sua recusa em governar Israel no pós-confronto com os midianitas, a obtenção de vantagens indevidas a partir da posição de juiz foi ato de corrupção, que, nas palavras do próprio narrador bíblico, “se tornou uma armadilha” para Gideão e para toda a sua família, tendo implicado a degeneração de uma terra novamente entregue à apostasia.
Ainda no terreno das heterodoxias, pensemos em Jefté, nascido de uma prostituta, repudiado por seus irmãos e sujeito a um ostracismo que perdurou até o advento da guerra contra os amonitas, quando o outrora bastardo foi convidado a assumir o comando das tropas, alçado à admiração do povo e tornado juiz por Deus. Antes da batalha, no entanto, havia prometido ao Senhor o sacrifício do que quer que saísse da porta de sua casa por ocasião do seu retorno. Tragicamente, o primeiro ser a saudá-lo após o triunfo foi sua filha única, que Jefté se viu forçado a abater, em fidelidade ao juramento. Pagou o mais elevado dos preços por sua tentativa de barganhar favores com Deus, pela leviandade no histrionismo verbal e por sua precipitação, condutas essas incompatíveis com a dignidade e a temperança esperadas daqueles que julgam.
Na mesma toada, o que dizer de Sansão, destinado à “judicatura” desde o ventre e agraciado pelo Senhor com uma força sobre-humana, mas luxurioso a ponto de revelar à sua amante Dalila o segredo de seu poder no comprimento do cabelo não-cortado?
Contudo, nenhum desvio dos antigos juízes hebreus se compara aos desmandos de seus atuais “congêneres” da terra da gente bronzeada. Sob o sol dos trópicos, juízes de cúpula censuram a expressão alheia, cerceiam o ir e vir de todos os que firam suas suscetibilidades e condenam seus inimigos pessoais a anos de masmorra e/ou à quebra financeira sem qualquer atenção ao devido processo legal. Chegam ao cúmulo de atuar como julgadores, acusadores e supostas vítimas a um só tempo, de antecipar suas decisões sob os holofotes midiáticos e até de intimidar legisladores de modo a que somente sejam votadas as iniciativas legislativas favoráveis aos interesses pessoais dos tais juízes. Como se não bastassem tantas irregularidades, os empoderados ainda se permitem desfrutar de estadias internacionais luxuosas, custeadas por partes interessadas em processos dependentes de suas canetas, assim como participar de convescotes com seus jurisdicionados, suspender a seu bel-prazer multas bilionárias devidas por empresários assumidamente corruptos e até examinar causas patrocinadas por seus parentes. Por último, mas não menos importante, se regalam em remunerações nababescas, em privilégios de todo o gênero – por eles mesmos concedidos! – e em períodos quase intermináveis de férias.
Após a morte de Sansão, último dos juízes que deram título ao livro bíblico, sucederam-se episódios de idolatria e, descrita na secura de seu horror, uma cena de estupro coletivo protagonizado por herdeiros da linhagem de Benjamin. A barbárie dos benjaminitas desencadeou uma guerra civil, e, exterminadas dezenas de milhares de homens do clã dos violadores, teve lugar uma reconciliação forçada, mas nada sólida, entre os filhos das doze tribos de israelitas. “Naqueles dias, Israel não tinha rei; cada um fazia o que parecia certo a seus próprios olhos”, ecoava o narrador de Juízes em tom de lamento e desesperança, diante de um cenário de profunda instabilidade político-social, em que indivíduos se viam na dependência de esporádicos “salvadores” para usufruírem de uma certa paz em suas rotinas.
Na terra do sol, a era dos juízes não se encerrou. Nem há previsibilidade de queda do regime lá imperante. Contrariamente aos anciãos bíblicos, que, apesar de seus vícios, mereciam admiração da coletividade por eles comandada e, por sua vez, nutriam respeito pela lei divina outorgada a Israel desde o Êxodo, os juízes bronzeados não gozam de legitimidade aos olhos de parcela significativa da população e não demonstram qualquer reverência às leis vigentes ou aos costumes outrora em voga em seu próprio tribunal.
Sob um prisma estritamente religioso, as desventuras narradas entre os períodos de comando dos juízes são enxergadas como punição divina pela apostasia à qual os antigos hebreus tendiam a sucumbir. Em termos políticos, a ausência de rei em Israel pode ser interpretada como um perigoso vácuo de poder, onde, na falta de instituições constituídas para a garantia da eficácia das leis, “cada um fazia o que parecia certo a seus próprios olhos”, incluindo-se, nesse fazer impune, quaisquer atos bestiais de violação a outrem, como foi o assombroso estupro coletivo por benjaminitas.
Os atuais dias dos juízes tropicais já são marcados pela imprevisibilidade, pois os figurões, insuscetíveis de controle institucional, fazem tudo o que lhes “parece certo”, fomentando uma permissividade que estimula a população a agir do mesmo modo abusivo. Ainda que o regime dos juízes bronzeados venha a ser derrubado, ainda assim caberá à população da terra do sol chegar a um novo consenso político-social que defina com clareza as incumbências dos poderosos, que imponha freios rígidos ao poder e que contemple mecanismos de participação cidadã efetiva nas deliberações da vida pública. Caso contrário, a comunidade dos trópicos poderá ser sujeita às mesmas vicissitudes experimentadas pelos hebreus desde a era dos juízes até o surgimento da monarquia em Israel.
De tanto implorarem por um rei, desejando “ser como todas as nações ao redor”, os israelitas obtiveram de Deus a unção ao seu primeiro monarca. Não sem antes terem ouvido, do sacerdote Samuel, todas as advertências sobre os riscos – inclusive tributários! – inerentes à forma de exercício do poder. Já na contemporaneidade do lindo país dos trópicos, espera-se que, sob a pressão de indivíduos legitimamente revoltados, os poucos atores políticos ainda movidos pela sensatez lutem pela retomada da ordem institucional. Votos para o ano que se inicia, e talvez para vários outros ainda por virem.
Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.
*Publicado originalmente no Instituto Liberal