Caso Musk: como a antipatia leva à demonização
(Felipe Moura Brasil, publicado no portal O Antagonista em 23 de janeiro de 2025)
Quando pessoas passionais não simpatizam com um indivíduo, cai assustadoramente o nível de exigência delas em relação às evidências necessárias para a conclusão de que ele fez algo repugnante ou maligno, de modo consciente, intencional e deliberado.
Não simpatizar com um indivíduo também aumenta exponencialmente a suscetibilidade das pessoas passionais à manipulação feita por propagandistas políticos cínicos, para que elas repercutam suas ofensas a adversários, como se fossem descrições de fatos objetivos.
Nesses casos, as pessoas passionais funcionam como um cônjuge que, atormentado com a hipótese de traição, vê em qualquer cumprimento de terceiros uma prova do ato consumado, sobretudo se manipuladores estiverem espalhando fofocas neste sentido.
O gesto de Elon Musk
Um exemplo ilustrativo deste fenômeno veio do gesto de Elon Musk, na posse de Donald Trump como presidente pela segunda vez dos Estados Unidos, que levou a esquerda e seus porta-vozes a associarem o empresário ao nazismo.
O dono da rede social X e agora chefe do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla em inglês) do governo Trump, ao discursar empolgado para uma plateia de eleitores republicanos, declarou do palanque:
“Eu só quero dizer obrigado por tornarem isso realidade, obrigado.”
Ovacionado, Musk imediatamente colocou a mão no peito e fez um gesto rápido de lançamento do coração para a plateia, dizendo com todas as letras em seguida: “My heart goes out to you”, o que, literalmente, significa: “Meu coração sai [do meu corpo] para vocês”.
Saudação nazista?
Na imprensa amiga da esquerda, porém, o braço esticado por um segundo, com a mão espalmada, foi interpretado como uma saudação nazista, alegação turbinada com a edição do vídeo, ou o congelamento da imagem do gesto, de modo a omitir a frase que o explicou em tempo real, com sentido próprio.
Que alguém com quem não se simpatiza — e que sofra da Síndrome de Asperger — tenha feito um gesto espontâneo e eventualmente desengonçado que apenas se assemelha involuntária e parcialmente (ou as tropas de Hitler botavam a mão no peito?) ao símbolo de um regime que matou 6 milhões de judeus, é uma possibilidade vista por pessoas politicamente passionais como “ingenuidade” ou “erro”, e por manipuladores como defesa de “nazistas”.
Essa gente já definiu que Musk é mau e não quer abrir mão da chance de explorar o episódio para legitimar sua tese pré-concebida. A oportunidade de carimbar como abominável o indivíduo com quem não se simpatiza, de modo a persuadir os outros de que ele não merece credibilidade em seus posicionamentos e opiniões, é por demais tentadora para manipuladores e pessoas passionais, e acaba prevalecendo à necessidade de embasar, com elementos de corroboração, a pior interpretação possível, tomada como verdade incontestável.
Qual é a evidência?
A hipótese-mãe de que Musk é nazista ainda se desdobra, no entanto, nas hipóteses secundárias de que Musk tenha feito o gesto com a intenção maquiavélica de afagar uma suposta parcela de eleitores simpáticos ao nazismo, ou de despertar uma reação midiática hostil a fim de apontar a própria histeria esquerdista. Mas qual é a evidência da necessidade de usar estratégia tão arriscada — capaz de gerar desgaste em outros segmentos e desviar o foco das primeiras medidas do governo Trump — após a vitória eleitoral?
Nenhuma, claro. Tampouco há evidência de qualquer ato antissemita, ou estímulo ao ódio contra judeus, praticado por Musk, o que não se pode dizer da esquerda anti-Israel e de seu braço midiático, que vêm repercutindo em TV, rádio, campi universitários e redes sociais as narrativas falseadas do Hamas sobre o 7 de outubro de 2023 e a reação militar israelense.
Pelo contrário: em novembro de 2023, mês seguinte ao assassinato de mais de 1200 pessoas e ao sequestro de outras centenas, Musk mostrou em painel da Cúpula DealBook, evento do jornal americano New York Times, que usava um colar pró-judeus com os dizeres “Tragam-nos de volta”, em referência aos reféns levados para a Faixa de Gaza, e ainda repudiou os atos no Ocidente de apoio ao terror.
Reféns do Hamas
“Ganhei [o colar] dos pais de um dos reféns. Prometi usar enquanto houvesse reféns. E tenho usado. Os judeus têm sido perseguidos há milênios. Todo mundo aqui viu as manifestações pró-Hamas em todas as principais cidades ocidentais. Isso deveria ser chocante”, disse o empresário na ocasião.
Em que pese o interesse do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, de acenar ao governo Trump, não é de surpreender, portanto, que ele tenha saído agora em defesa de Musk como “um grande amigo de Israel”, que “está sendo falsamente difamado”.
“Ele visitou Israel após o massacre de 7 de outubro, no qual terroristas do Hamas cometeram a pior atrocidade contra o povo judeu desde o Holocausto. Desde então, ele tem apoiado repetida e vigorosamente o direito de Israel de se defender contra terroristas genocidas e regimes que buscam aniquilar o único Estado judeu. Agradeço a ele por isso”, registrou Netanyahu no X.
Prudência
Uma das diferenças entre pessoas passionais e jornalistas sérios, ou qualquer cidadão indisposto a deixar-se levar por seus instintos mais primitivos, é a prudência de reprimir ou recusar interpretações feitas com o fígado a partir das aparências, ou da exploração maliciosa delas, sobretudo para não ofender a honra de qualquer indivíduo gratuitamente, com base em especulações sobre intenções ocultas.
Associar alguém aos atos mais cruéis da história humana, a partir de uma base tão rasteira, não só banaliza a crueldade histórica, como vulgariza o debate público. Da divergência à antipatia, da antipatia à hostilidade, da hostilidade à ofensa, da ofensa à demonização, da demonização à violência, da violência à guerra, o caminho é cada vez mais curto.
O cinismo de manipuladores pode não ter cura, o que dificulta a reversão desse processo, mas a passionalidade de pessoas comuns, se conscientizada, pode ser contida antes da selvageria. Urge que subam o nível de exigência de evidências para acusações tão infames.