No início, eram “apenas” aparições midiáticas, bem mais assíduas do que se esperaria, de servidores públicos investidos da função de dirimir litígios. Em seguida, começaram a proliferar as participações de supremos togados em eventos patrocinados por seus jurisdicionados, durante os quais ministros passaram a se dar ao luxo de proferir palestras sobre temas estranhos à sua atuação, como, por exemplo, políticas ambientais e econômicas.
Porém, os meros convites de jornais e de empresários não se mostravam à altura da missão de magistrados que alardeavam suas imagens como “redentores” de uma democracia supostamente sob ataque durante a gestão Bolsonaro. Para libertar o país da sanha dos imaginários golpistas, carecia-se de algo bem mais arrojado. Foi então que a corte suprema, em menosprezo à inércia institucional e ao dever de imparcialidade de seus membros, tomou a iniciativa de elaborar seus próprios materiais de comunicação; não para universalizar o acesso à íntegra de seus julgados, mas na tentativa de reafirmar sua legitimidade arranhada aos olhos da população e de incutir sua cosmovisão em mentes ainda verdinhas de crianças e adolescentes.
Um dos marcos dessa empreitada dita “salvacionista” foi o lançamento da campanha intitulada “A Turma da Mônica e o Poder Judiciário”, pretensamente destinada a usar os personagens para a conscientização do público infanto-juvenil sobre o funcionamento de cada ramo da justiça e do STF. Nas palavras do ministro Fux, então à testa da corte, a iniciativa se justificaria diante da existência de “pessoas, com posições extremadas, que, ao contrário de exercerem a liberdade de expressão e a crítica construtiva, infelizmente, vêm atentando contra a credibilidade das instituições e da Justiça brasileira, em especial da Suprema Corte.” Em ambientes livres e democráticos, órgãos estatais e figuras em posição de mando podem e devem ser colocadas em xeque, cabendo-lhes, em resposta à desconfiança da sociedade, apresentar serviços públicos mais baratos, céleres e eficientes. Já os sistemas avessos às transformações necessárias, como o nosso, reagem mediante recursos propagandistas que encubram os vícios das más práticas e detratem as vozes críticas.
Por óbvio, as despesas com a Turma foram escamoteadas, sob o argumento falacioso de que o material teria sido confeccionado sob o patrocínio de três associações de juízes (a Ajufe, a AMB e a Anamatra), e, portanto, “sem custo aos cofres públicos”. Como se as guildas da magistratura não fossem sustentadas por verbas públicas e, mais especificamente, pelos elevados custos impostos às partes litigantes para a prática de atos processuais!
No pós-08.01, as peças de propaganda vêm assumindo variadas “padronagens”, todas confeccionadas mediante recursos que, embora públicos, seguem sob a discrição das togas. Nesse espaço, já havia comentado a publicação, pelo STF, do e-book intitulado “Democracia inabalada”, acintoso ao exibir elementos probatórios contidos nos autos de ações ainda em curso no próprio tribunal. Na mesma ocasião, também havia citado a criação de um “museu do 08.01”, onde a equiparação de evento sub judice a fatos históricos consumados escancarava a quebra do dever de isenção judicial.
Retomando o inusitado papel de educadores, os togados lançaram o programa “STF na escola”, ancorado em personagens de quadrinhos infantis usados como fios-condutores das crianças nos universos do tribunal e da Constituição. Chegaram a produzir a brochura intitulada “Uma aventura com a Constituição”, exibindo imagens ficcionais de crianças em um sobrevoo pelas regiões brasileiras, às quais são introduzidas pela Constituição, retratada na estória como tapete mágico e narradora a um só tempo.
Em trecho indisfarçavelmente prosélito, o mapa do Brasil é apresentado com pretensas especificidades locais pinçadas a dedo, tais como “desmatamento” ao Norte, “conflitos agrários” no Centro-Oeste, “arte e empreendedorismo” no Sudeste, “desigualdade” no Nordeste e “agrotóxicos” ao Sul. No parágrafo posicionado acima do desenho, consta que “a Constituição servia como uma lupa, que ajudava a observar as injustiças que poderiam ser resolvidas com apoio de regras já escritas em suas páginas”. Além de avocarem para si uma tarefa pedagógica que não lhes diz respeito, togados promovem, na brochura, uma correlação entre as normas constitucionais e a resolução das tais injustiças, na tentativa de incutir, desde a infância, a noção errônea de que a formulação e/ou o monitoramento de políticas públicas caberia, em última análise, às canetas dos guardiões da Constituição. “Didática” em perfeita sintonia com os recentes processos estruturais, como o que redundou no desenho do plano “Pena Justa”, o que se acha em tramitação nos autos da ADPF das Favelas e todas as demais anomalias processuais que vêm permitindo à nossa elite judiciária a imposição de suas próprias escolhas políticas, sem necessidade de representação popular nas urnas.
No marco dos 6 anos da abertura do inconstitucional e ilegal Inquérito das Fake News, o STF publicou, em suas redes, um material de campanha de conscientização e prevenção de feminicídio. Os vídeos, frutos de uma parceria com a plataforma humorística Porta dos Fundos, apresentam situações ficcionais que explicitam a atual impossibilidade do uso da tese da legítima defesa da honra no âmbito de crimes praticados contra mulheres.
A colaboração, mencionada com orgulho pelo tribunal, configurou, no entanto, mais uma “inovação” descabida. Afinal, o rol de numerosas funções constitucionais da corte não inclui a realização de parcerias, muito menos a formulação de campanhas, e, menos ainda, a divulgação de mensagens institucionais no tom irônico próprio à comédia. Na qualidade de agentes públicos cingidos à legalidade estrita, supremos juízes só poderiam desenvolver as atividades previstas no artigo 102 da Constituição, abstendo-se de quaisquer outras concebidas por suas imaginações férteis.
Porém, togados que se sobrepõem às normas e aos princípios constitucionais se sentem empoderados para tudo o que lhes ditarem seus desejos. Inclusive para firmarem parceria com humoristas, que, cedo ou tarde, poderão figurar como partes em processos no STF e para transformarem seus próprios julgados em motes para peças satíricas – peças que, aliás, implicam indiscutível prejulgamento de eventuais recursos de homicidas cujos crimes tenham sido praticados sob violenta emoção, e que, por isso, sejam beneficiários de redução de pena, na forma do artigo 121, parágrafo 1º do Código Penal.
Ao longo dos anos, nossa elite judiciária abandonou sua função judicante para se metamorfosear em um hibridismo de legisladora, implementadora de políticas públicas, censora de opiniões individuais e, agora, uma espécie de “departamento de propaganda” de sua própria atuação. Não à toa, se empenha tanto em emplacar uma imagem fantasiosa de pacificadora e humanista, quando os fatos, vistos com olhos de ver, apontam sua atuação no acirramento das tensões sociopolíticas e na violação cruel a prerrogativas individuais.
Se, para nós, liberais, setores de comunicação de governos eleitos geram desconfianças quanto ao abuso da máquina para fins de autopromoção com verbas públicas, o que dizer de uma comunicação exercida por magistrados e travestida sob o manto esfarrapado de pseudodefesa de direitos? Na falta de um senado disposto a frear os desmandos, nossos comandantes togados tendem a prosseguir ditando políticas em todas as esferas federativas e investindo o nosso dinheiro em propagandear os “benefícios” das restrições indevidas às nossas liberdades. Assim funciona qualquer regime autoritário; o atual não haveria de ser exceção.
Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.
*Publicado originalmente no Instituto Liberal