O Globo
O Tribunal Superior de Justiça da Catalunha (TSJC) decidiu anular a sentença condenatória e absolver Daniel Alves da acusação de agressão sexual no banheiro de uma boate em Barcelona, em dezembro de 2022. Em decisão unânime, proferida nesta sexta-feira, a Corte considerou insuficiente o depoimento da denunciante e apontou “lacunas e contradições” no julgamento que havia condenado o ex-lateral da seleção brasileira, em fevereiro de 2024, a 4 anos e meio de prisão.
O TJSC disse que o caso tinha uma série de “lacunas, imprecisões, inconsistências e contradições quanto aos fatos” e que, por isso, “não compartilhava da convicção” da primeira instância. A Corte apontou uma “falta de fiabilidade” do depoimento da jovem que acusou Daniel Alves, especificamente sobre fatos que puderam ser registrados em vídeo na boate, naquela noite de dezembro de 2022 (a parte considerada “objetivamente verificável”, segundo a Justiça espanhola).
“A história não corresponde à realidade”, considerou o tribunal. Na decisão desta sexta-feira, o TJSC afirmou que, “pelas provas apresentadas, não se pode concluir que tenham sido superados os padrões exigidos pela presunção de inocência”. O tribunal ponderou que não dar como “provada” a acusação não significava, tampouco, afirmar a versão de Daniel Alves como verdadeira. Mas ressaltou que a doutrina constitucional do país exige um “cânone de motivação reforçado” nas condenações.
Leia abaixo trechos da decisão que absolveu Daniel Alves
Na decisão, o TJSC descreveu como a denunciante e Daniel Alves se encontraram na boate.
“Em 31 de dezembro de 2022, aproximadamente às 2h45, D. A. d. S [Daniel Alves] foi com seu amigo T1 à boate Sutton, localizada na rua Tuset, 13, em Barcelona. Uma vez lá dentro, ele entrou na área VIP reservada chamada ‘Moet’ e sentou-se na mesa número 6, que tem acesso exclusivo à área reservada adjacente, chamada ‘Suíte’ (…) Por volta das 2h30 da manhã do dia 31 de dezembro de 2022, entraram na boate Sutton DDDDDD [a denunciante], acompanhada de sua prima T2 e de sua amiga T3. Depois de terem estado no salão geral, e depois de terem ido, por volta das 2h50 da manhã, à zona VIP reservada ‘Moet’ a convite de um grupo de rapazes mexicanos, às 3:20 da manhã deslocaram-se, por convite expresso, para a mesa 6, onde se encontrava D.A. [Daniel Alves] com o seu amigo T1”.
Segundo a Corte, o grupo de cinco pessoas ficou reunido até que Daniel Alves e a denunciante “conversaram e dançaram juntos de forma mais próxima e íntima, combinando entrar na área privada da área reservada onde estavam”. O trecho faz referência à “Suíte”, um espaço composto por um corredor com outra porta, que levava a um banheiro.
“Assim, às 03:42 horas, D.A. [Daniel Alves] foi até a porta ao lado de sua mesa e entrou na “Suíte”. Dois minutos depois, DDDDDD [a denunciante] acessou [o espaço]. Uma vez dentro da “Suíte” ambos tiveram relações sexuais, com penetração vaginal, no banheiro”, diz trecho da decisão.
Exames com swab bucal na denunciante constataram a presença de esmegma, uma secreção encontrada em órgãos genitais. Ela apresentava lesão no joelho esquerdo consistente com uma escoriação e três hematomas, “restando como sequela uma cicatriz”, apontou a Corte. A decisão então lista os argumentos do Ministério Público, dos advogados da denunciante e também da defesa de Daniel Alves antes de firmar suas análises sobre o julgamento em primeira instância e os recursos.
Credibilidade x confiabilidade
Na decisão, o TJSC afirmou que credibilidade não se confunde com confiabilidade e que o depoimento da denunciante deveria ter sido corroborado por outras evidências para sustentar a condenação.
“O acórdão da instância utiliza, em sua análise, o termo credibilidade como sinônimo de confiabilidade, o que não é verdade. A credibilidade responde a uma crença subjetiva, que não pode ser contrastada, associada à pessoa que faz a declaração; a confiabilidade, por outro lado, afeta a declaração em si. O que deve ser avaliado em relação ao próprio depoimento para determinar sua confiabilidade é sua veracidade, ou seja, a correspondência entre o que o depoimento contém e o que realmente aconteceu, e isso só é possível se houver elementos objetivos que permitam tal determinação. Desta forma, permite-se a valoração individual do depoimento como meio de prova que posteriormente, para obter maior confiabilidade, requer corroboração que é produzida pela avaliação conjunta do conjunto de evidências”.
Lacunas e imprecisões
O TJSC apontou inconsistências e contradições na fundamentação da sentença da primeira instância. Apontou “uma série de lacunas, imprecisões, incoerências e contradições quanto aos fatos, à apreciação jurídica e às suas consequências”, com menção direta a dois momentos da noite na boate: a interação antes da entrada na “Suíte” e após a entrada nessa área reservada da zona VIP.
O tribunal afirma que a própria primeira instância já havia destacado que os fatos registrados pelas câmeras de segurança da casa noturna “não coincidiam” com a versão da denunciante e concluído que a mulher acessou a “Suíte” voluntariamente.
“Quanto ao primeiro momento, o Tribunal de Primeira Instância afirma que a versão da reclamante não corresponde ao que é observado nas câmeras de segurança. Portanto, o julgamento deixa claro que seu relato não condiz com a realidade objetivamente observada”, diz trecho da decisão desta sexta-feira.
Na análise do caso, o TJSC apontou que a liberdade sexual e o consentimento individual são indissociáveis, sem que se admita a alegação de consentimento geral ou diferido.
No entanto, entendemos que esta é uma questão não decisiva na área da confiabilidade, que é a que estamos analisando, e que conceitualmente não tem relação com a existência ou não de consentimento no contexto de uma relação sexual. Pelo contrário, consideramos que a divergência entre o que foi relatado pela denunciante e o que realmente aconteceu compromete seriamente a confiabilidade de sua história”, afirmou a Corte.
O tribunal apontou, ainda, que as contradições não advém de um relato “fruto de um impulso ou de um momento de confusão”, já que a denunciante manteve a mesma versão ao longo da investigação e embora ela soubesse haver registros de câmeras de segurança que pudessem refutá-la. O TJSC ressaltou que as dúvidas sobre essa parte da história não levam “automaticamente à rejeição” de toda a denúncia.
“Mas não se pode ignorar, como já salientamos, que essa inverdade afeta significativamente a confiabilidade das informações prestadas pela testemunha, o que exige o máximo rigor no escrutínio do restante da história e na intensificação dos requisitos objetivos de confiabilidade. Essa demanda maior só pode ser apoiada pelo contraste do restante das evidências e pela necessidade de corroborações periféricas”, destacou o TJSC.
Disposições finais
“Em vista do exposto, DECIDIMOS:
1. São negados provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo Ministério Público contra a sentença de 22 de fevereiro de 2024, do Tribunal Provincial de Barcelona (Vigésima Primeira Seção).
2. Admitir o recurso interposto pela representação legal do D.A.d.S [Daniel Alves]. Revogamos toda a sentença proferida no tribunal de primeira instância. Devemos absolver D.A.d.S do crime de agressão sexual do qual ele foi acusado. Ficam revogadas as medidas cautelares adotadas (…)
Dar ciência da presente deliberação às partes interessadas, informando-as de que dela cabe recurso para a Segunda Câmara do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos previstos no art. 847 do Código de Processo Penal.
Esta é a nossa sentença, que assinamos e ordenamos”