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Em busca da segurança jurídica perdida

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Assim como em todos os demais aspectos da existência humana, também no universo jurídico o tempo desempenha papel primordial. É pelo seu curso que o credor inerte perde a faculdade de exigir o seu crédito, ou que o réu silencioso durante a contestação a uma ação judicial permite que os fatos contra ele narrados pelo autor se presumam verdadeiros. Também é o tempo que torna definitiva e, portanto, inalterável uma decisão de uma corte de justiça, sempre que tiverem expirado os prazos para eventuais recursos contra o julgado, ou que nem mais couberem recursos. Essa blindagem de uma deliberação judicial contra modificações, ou, no juridiquêscoisa julgada, é contemplada pela nossa Constituição como uma garantia fundamental[1] e só pode ser rompida em condições excepcionalíssimas[2] como, por exemplo, nos casos extremos de corrupção comprovada do julgador ou de falsidade das provas usadas como fundamento da decisão, hipóteses que peço a você, desde já, que apague da sua mente, por fugirem por completo ao nosso escopo.

Você deve ter lido que, em julgamento recente, o STF formou maioria para reverter decisões definitivas[3], e talvez você até tenha desviado os olhos da notícia, veiculada com tecnicismos não esclarecidos e referente à cobrança de impostos, tema que pode considerar chato, ou pouco relevante para sua rotina. Porém, caro leitor paciente, não canse dessas linhas nas quais vou tentar explicar o cerne do assunto em discussão, pois exaustivo mesmo é o país onde você e eu vivemos, que insiste em desperdiçar tempo e recursos com entendimentos retrógrados, geradores de impactos muito gravosos.

Trata-se de casos referentes a contribuintes distintos e sob a relatoria de ministros diferentes, porém julgados simultaneamente devido à identidade da matéria examinada. O primeiro processo, relatado pelo ministro Barroso, diz respeito à Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), cuja cobrança, questionada em juízo por uma empresa contribuinte, foi declarada inconstitucional lá pelo início dos anos 90, tendo a decisão naquele caso específico feito coisa julgada em 1992. A deliberação tornada definitiva foi proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª. Região (TRF1), em exame local da constitucionalidade do tributo, que só gerou efeitos para a referida contribuinte, autora da ação.

Contudo, em 2006, a União Federal cobrou da contribuinte um crédito referente à CSLL supostamente devida entre os anos de 2001 e 2003, o que levou a empresa, indignada diante da cobrança, a propor uma medida contra a União, alegando a inexistência de débito, exatamente com base na deliberação transitada em julgado ainda no início da década de 90. Após sucessivos recursos nos autos dessa medida (já proposta no novo milênio), o assunto foi parar nas mesas dos togados supremos e está causando alvoroço, tanto no próprio universo jurídico quanto no corporativo.

Em breves linhas, Barroso sustenta em seu voto[4] que, em 2007, o STF decidiu ser constitucional a CSLL, em um julgamento a partir do qual as empresas em geral passaram, daquele ano em diante, a arcar com a contribuição. Assim, no seu entender, a coexistência, após 2007, entre a contribuinte que havia sido dispensada do pagamento do tributo pela decisão transitada em julgado (cf. comentado no parágrafo acima) e as demais empresas, atreladas à obrigação de recolher a CSLL, revelaria uma “discrepância passível de violar a igualdade tributária”. No entanto, como se depreende de uma análise mais cuidadosa, a “desigualdade” tributária atentatória aos princípios jurídicos é aquela criada por lei, ou seja, por normas em abstrato que tratem desigualmente os iguais. Muito distante da tal disparidade está o assunto em questão, onde uma certa empresa, no passado distante, suportou o peso das custas judiciais e dos honorários advocatícios para ingressar em juízo contra um tributo, e saiu vitoriosa, tendo recebido do braço julgador do Estado a garantia, em definitivo, de que não teria mais de arcar com essa obrigação tributária. Ora, como pode a referida entidade ser penalizada pela inércia de suas concorrentes em oferecerem o mesmo tipo de ação naquele momento, ou, o que é ainda pior, por uma mudança de entendimento pela Suprema Corte, tantos anos após a constituição de uma situação favorável àquela contribuinte?

Ao longo de seu raciocínio, Barroso tece uma analogia com um dispositivo do Novo Código de Processo Civil, segundo o qual nenhum julgador tornará a apreciar as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo no caso de modificação posterior das circunstâncias[5]. A falácia reside no próprio conceito clássico de “lide”, que consiste em uma pretensão de uma parte (autor) resistida pela outra (réu) e pressupõe necessariamente uma relação concreta entre dois ou mais litigantes em um processo que, em certos casos, pode sofrer reversões, dependendo da modificação de situações jurídicas ou fáticas. Como, por exemplo, em uma revisão de alimentos, onde o empobrecimento e o enriquecimento do alimentante podem vir a alterar os valores devidos por este ao beneficiário da verba, em momentos distintos do processo. Ocorre que, no assunto em questão, a empresa vitoriosa no litígio nos anos 90 não figurava como parte na ação decidida pelo Supremo em 2007, até porque, para ela, o assunto já havia sido encerrado. Ainda que ações de inconstitucionalidade perante o STF, como a de 2007, não produzam efeitos apenas para as partes, seria absurdo conceber que uma pessoa, física ou jurídica, amparada por decisão judicial definitiva, proferida em um passado remoto, pudesse ficar ao sabor das flutuações da jurisprudência futura!

Em mais um de seus conhecidos arroubos legislativos revelados em inúmeros atos falhos, Barroso chega a afirmar que a decisão do STF sobre a constitucionalidade de tributos, ainda que desfavorável ao contribuinte, “produz para ele norma jurídica nova”, como se o Judiciário dispusesse da prerrogativa de fabricar normas. Atuando como verdadeiro “legislador”, o togado condicionou sua decisão ao princípio da anterioridade, conhecido no direito tributário como sendo o que só permite a cobrança de um tributo no exercício financeiro subsequente àquele durante o qual a lei o tiver instituído. Nem é necessário dizer que, na fantasiosa mente do togado, a norma que imporá o recolhimento da CSLL a todos os contribuintes – independentemente de serem estes beneficiários ou não de decisões transitadas em julgado – é a deliberação do Supremo em exame.

No processo relatado pelo ministro Fachin, a empresa que se insurgiu contra a cobrança da CSLL obteve uma decisão favorável por parte do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), que também havia transitado em julgado em 1992. No entanto, como a contribuinte se encontra sob o regime de fiscalização da Receita Federal, a União houve por bem, após a decisão do STF, em 2007, de declaração de constitucionalidade da contribuição (já aludida acima), reabrir a apreciação da matéria.

Basicamente, Fachin lançou mão dos mesmos argumentos de Barroso, sustentando que o advento de novas situações de fato e de direito é passível de provocar a modificação indistinta de sentenças pretéritas, até mesmo daquelas já transitadas em julgado. Um detalhe pitoresco no voto de Fachin foi a alusão a uma decisão de Gilmar Mendes em 2013, onde Gilmar asseverava que, dependendo de alterações nas circunstâncias objetivas, normas já consideradas constitucionais no passado poderiam vir a ser declaradas inconstitucionais. No entanto, o que Gilmar não afirmava, pelo menos não em seu voto da década passada, é que a declaração de inconstitucionalidade pudesse vir a afetar situações amparadas pela coisa julgada…Nesse ponto, Fachin se permitiu até essa extrapolação em entendimento vetusto de seu colega.

Assim como Barroso, Fachin havia atuado como autêntico “legislador”, observando o princípio da anterioridade, e fazendo com que seu voto produzisse efeitos a partir da sua prolação.

Contudo, como informado por Valor, ambos os relatores ajustaram seus votos, retirando deles os trechos nos quais explicitavam que os efeitos das decisões seriam produzidos a partir deste julgamento ainda em curso. Segundo o periódico, tais ajustes teriam gerado uma nuvem adicional em um céu já tão obscuro, abrindo uma possibilidade para a cobrança de valores retroativos a 2007, ano em que, reitere-se, o STF modificou seu entendimento sobre a constitucionalidade da CSLL.

Sem maiores delongas, nossa cúpula judiciária, além de toda a censura, do ativismo e do desrespeito às leis e à Constituição, acaba de violar a sacrossanta esfera da coisa julgada, que mantém as partes destinatárias de decisões judiciais definitivas a salvo de oscilações futuras. Pelo menos, mantinha, até o julgamento em debate. Abre-se um perigoso precedente, com a possibilidade de perdas bilionárias para contribuintes que acreditavam dispor da “palavra de honra” do Estado-juiz de que não mais seriam incomodados sobre um determinado assunto. Precedente este, aliás, que pode não se restringir à esfera tributária, e afetar as mais variadas matérias.

Em meio à nebulosidade que só se avoluma, não enxergamos a milímetros de distância, e nossa segurança jurídica se torna um tesouro enterrado a uma profundidade cada vez maior. Ou bem tomamos uma atitude positiva e apoiamos as pouquíssimas reações a todo esse arbítrio, como, por exemplo, a iniciativa do deputado Marcel Van Hatten (NOVO/RS) de pleitear a instauração de uma CPI para investigação dos recentes abusos cometidos pelo STF e TSE[6], ou bem entregaremos, de joelhos, nossas liberdades aos novos comandantes de toga. Lembrando que liberdades, uma vez usurpadas, não são recuperadas do dia para a noite; antes, são um penhor valioso, cujo resgate pode levar décadas de lágrimas amargas.

[1] Art. 5º (…) – XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

[2] Artigos 966 a 975 do Novo CPC.

[3] https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2022/11/18/stf-maioria-dos-ministros-vota-para-derrubar-decises-favorveis-aos-contribuintes.ghtml

[4] https://www.migalhas.com.br/quentes/377270/coisa-julgada–maioria-do-stf-vota-por-quebra-automatica-de-decisoes

[5] Art. 505, I do Novo CPC.

[6] https://pleno.news/brasil/politica-nacional/marcel-van-hattem-pede-abertura-de-cpi-contra-ministros-do-stf.html

 

Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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