O que faz um servidor público no momento de “pendurar a chuteira”? Via de regra, recolhe seus pertences, fornece uma ou outra instrução aos seus substitutos no cargo e até celebra a sonhada aposentadoria ao lado dos antigos colegas, na tradicional cena da degustação do bolo de despedida da repartição. Isso se o funcionário em questão não for um alto dignitário, um magistrado de cúpula.
A duas horas de dar adeus à toga, o ministro Lewandowski decidiu manter sob a jurisdição do STF a apuração de alegada extorsão que teria sido praticada por Sérgio Moro, no período em que o atual senador se achava à frente da 13ª vara federal de Curitiba[1]. Segundo o supremo togado, a decisão teria reverberado o posicionamento do atual PGR, no sentido de que “(a) cronologia dos fatos expostos nesta manifestação aponta para eventual interferência de Sérgio Moro no julgamento dos processos envolvendo a Operação Lava Jato (…) mesmo após sua exoneração do cargo de Juiz de Direito, mas também passando por atos praticados na condição de Ministro de Estado da Justiça.”
Em cena recente, o advogado Rodrigo Tacla Durán, figura bem conhecida da fase lavajatista, como réu confesso da prática de lavagem de dinheiro para a Odebrecht, inclusive via emissão de notas fiscais falsas[2], prestou depoimento ao atual titular do juízo de Curitiba. Em sua oitiva perante o magistrado – aquele mesmo usuário do sugestivo código de identificação “LUL22”[3] -, o causídico afirmou, sem provas, que só teria sido alvo da Operação Lava-Jato devido à sua recusa em ceder a uma alegada extorsão por parte do então juiz, ou seja, a pagar “por fora” valor exigido por um escritório supostamente ligado a Moro[4].
Diante da alusão de Durán aos nomes de Moro e do então procurador Deltan Dallagnol, ambos chegados ao universo político nas últimas eleições, o juiz paranaense houve por bem remeter a investigação ao STF, por tratar-se de caso envolvendo autoridades com foro privilegiado[5].
Porém, ao submeterem o dito “caso Moro” ao exame da suprema corte, tanto o magistrado de Curitiba quanto o PGR e o supremo togado desconsideraram o fato de que, segundo texto explícito da nossa Constituição, a prerrogativa de função submete o parlamentar à jurisdição exclusiva do STF a partir da diplomação do mandatário, e somente por crimes praticados durante o mandato[6]. Aliás, foi essa a interpretação atribuída à Lei Maior pela própria corte, em julgado recente, ao “limitar o foro privilegiado a crimes durante e em função do cargo[7].”
E nem haveria que se cogitar de uma eventual continuidade delitiva após o encerramento da atividade judicante de Moro, pois o suposto crime, nas circunstâncias sob as quais lhe foi imputado, somente poderia ter sido praticado por um magistrado no exercício de suas funções. Se, nas palavras do próprio Durán, ele teria sido “forçado a pagar para não ser preso”, o pretenso extorsionário só poderia ter sido o juiz, investido de atribuições que lhe tivessem permitido, por ocasião dos fatos, infligir à suposta vítima a ameaça de seu encarceramento. Ora, de que outro modo o imaginário agente da extorsão poderia ter constrangido um réu em ação penal, mediante grave ameaça, a fazer algo (pagamento ao escritório) que lhe trouxesse indevida vantagem econômica, como descrito no Código Penal[8]? Raciocinando por absurdo, ainda que o tivessem desejado ardentemente, nem um ministro da Justiça nem um senador poderiam ter praticado a conduta narrada por Durán, por absoluta carência de poderes para tanto.
Portanto, a decisão de Lewandowski, proferida no apagar das luzes de sua era togada, é manifestamente incongruente com os fatos e contrária ao entendimento do próprio Supremo de onde se retira. Se mantida pelo colegiado, conduzirá à apreciação da corte a conduta de alguém que, no período referido por Durán, sequer sonhava em dispor da prerrogativa de foro, em mais um desrespeito à nossa Constituição.
E, se assim o for, receio que o ora senador Moro venha a ser submetido à avaliação de um tribunal que, ao que tudo indica, parece já ter formado um juízo apriorístico muito negativo em relação ao parlamentar. Pelo menos, desde a declaração de uma pretensa suspeição do ex-magistrado nos casos envolvendo o atual assentado no Planalto, em votos bastante exaltados por parte de certos togados[9].
De lá para cá, assertivas sobre Moro vêm sendo manifestadas em tom cada vez mais acalorado, como demonstram falas bem depreciativas de alguns ministros, como Gilmar Mendes e Toffoli, dentre outros[10],[11]. Em poucas semanas, se vierem a ser confirmadas a indicação e a nomeação para a vaga do aposentado Lewandoski, de Cristiano Zanin, advogado que representou Lula em todas as audiências outrora presididas por Moro[12], testemunharemos a situação singular de um causídico alçado à posição de juiz supremo por seu cliente presidente – ou seria presidente cliente? – e empoderado para definir o destino daquele que, no passado, havia condenado seu representado.
Em todo esse cenário embaralhado, onde ficará o dever de isenção? Onde ficará o direito de todo cidadão a um julgamento justo, por magistrados imparciais? Diante de toda uma população perplexa pela profusão das mais diversas narrativas, quem será o verdadeiro juiz, quem será o verdadeiro réu, e à luz de quais fundamentos éticos e jurídicos?
Não se brinca com fogo, muito menos quando está em jogo a legitimidade de todas as instituições. Entre nós, porém, a piromania parece ter atingido níveis intoleráveis.
[1] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/04/10/lewandowski-decide-que-acusacao-de-tacla-duran-contra-moro-fica-no-stf.htm
[2] https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2019/02/22/na-espanha-advogado-reu-na-lava-jato-admite-lavagem-de-dinheiro-para-a-odebrecht.ghtml
[3] https://www.poder360.com.br/justica/novo-juiz-da-lava-jato-se-identificou-como-lul22-em-sistema/
[4] https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/04/11/interna_politica,1479875/moro-sobre-investigacao-de-tentativa-de-extorsao-pelo-stf-recorrerei.shtml
[5] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/03/tacla-duran-volta-a-fazer-acusacoes-contra-moro-e-deltan-e-juiz-manda-caso-para-o-stf.shtml
[6] Artigo 53, parágrafos 2 e 3 da CF
[7] https://www.migalhas.com.br/quentes/279477/stf-limita-foro-privilegiado-a-crimes-durante-e-em-funcao-do-cargo
[8] Extorsão: Art. 158 do CP – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa
[9] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=462854
[10] https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2023/01/5064033-gilmar-mendes-moro-e-dallagnol-estavam-montando-uma-maquina-de-dinheiro.html
[11] https://muitainformacao.com.br/post/20902-lava-jato-e-sergio-moro-sao-alvos-de-criticas-de-dias-toffoli
[12] https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/04/indicacao-de-zanin-ao-stf-deve-ser-selada-por-lula-em-viagem-a-china.ghtml
Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.