(Adrilles Jorge, publicado na Revista Oeste em 7 de maio de 2023)
Um Estado, do ponto de vista político, serve para organizar a vida em sociedade. O ser humano é um bicho ambíguo: sabe que sua natureza é animalesca: quer esmagar seu competidor, transar com a mulher alheia, ser mais rico e poderoso que todos. Ao mesmo tempo, sabe de sua natureza ruim, mas tem consciência que pode dar conta da ruindade criando a justiça e a misericórdia, percebendo que ele pode ser bom para além da miséria de seus instintos dominadores. Para ser bom, cria mecanismos que regulem sua natureza, que regulem a sociedade: cria um negócio chamado Estado. Vai além: cria o Estado democrático, em que todos participam, direta ou indiretamente, das decisões que regulam e ordenam a sociedade, ou seja, em que todos regulem, coletivamente, os instintos e vontades opressoras e animalescas uns dos outros.
Agora eu te pergunto: o Estado brasileiro hoje regula ou melhora a vida em comum do brasileiro? O Estado democrático brasileiro hoje permite que todos, de maneira livre, participem das decisões para melhoria da vida coletiva? O Estado democrático livre brasileiro permite que todos sejam livres para expressar o que querem, inclusive criticarem o funcionamento do Estado? O Estado brasileiro limita os instintos opressores e animalescos de cada ser humano constituinte da sociedade ou deixa apenas que uns se sintam livres para, em nome da defesa deste mesmo Estado, soltem seus instintos mais agressivos de dominação e opressão de todos em redor?
Horas atrás, o ministro da Justiça — justiça, o ponto alto do Estado — disse que vai, com o Supremo Tribunal Federal (STF), regular a internet. Dias atrás, o esdrúxulo projeto de lei de censura oficial das redes sociais foi derrubado. Derrubado pelo povo que pressionou seus deputados a votarem contra esta excrescência autoritária que castrava a voz do cidadão livre nas redes sociais. Dino se revoltou. O Supremo se revoltou. Dino e o STF creem necessário o que chamam de regulação de crimes de opinião. Para isso, lançam mão de argumentos como: há grupos nazistas e de linchadores de criancinhas na internet; há grupos que fomentam pedofilia, automutilação e até mesmo homicídios nas redes sociais. Quem não se comoveria com este argumento? Mas o fato estranho é que há leis claras contra incitação de crimes deste tipo, dentro e fora da internet. Qual a razão de uma regulação das redes sociais para coibir crimes deste tipo?
Este escriba que vos escreve foi censurado em seu Twitter recentemente. Três meses de gancho. Resumo da sentença suprema: porque eu falei que havia censura no Brasil. Em resposta, me censuraram. Três meses de boca calada na rede. Eu sou nazista? Sou assassino de criancinha? Pois bem: fui tratado como um criminoso deste tipo por ter contestado o legítimo Estado Democrático de Direito. Eu e dezenas de pessoas, jornalistas, influenciadores, fomos censurados previamente por termos emitido uma opinião que não se ajustava à elite dirigente do Estado livre e democrático brasileiro. A crítica legítima ao Estado, segundo a Justiça oficial deste Estado, é quase um golpe de Estado. Opinião contrária ao Estado oficial no Brasil é, segundo o ministro da Justiça ou algum ministro, tão sórdida quando uma machadada na cabeça de uma criança.
Agora me responda, dileto leitor: você vê o tempo todo nas redes gente falando de nazismo, gente estimulando a matar criancinha? Não, né ? Se houver este tipo de coisa, dentro ou fora de alguma rede social, ou de qualquer realidade, alguma autoridade vai prender e apagar este tipo de coisa. Agora, caro leitor, você vê o tempo inteiro gente cometendo alguma opinião crítica contra aquele político ou dirigente, ou ministro de Estado. Normal num Estado Democrático de Direito você criticar quem quer que seja numa democracia liberal. Pela crítica, você melhora a atenção aos poderes que emanam de você mesmo, do povo. Você deve se lembrar quantas vezes você já ouviu “fora Collor, fora Temer, fora Bolsonaro, fora FHC”, etc. Mas, se agora você ou um outro disser “fora Xandão”, fora STF, você vira criminoso, nazista, assassino de criancinha, passível de censura prévia, de prisão preventiva ou eterna, sem direito a processo. Agora, uma crítica a um dos nobres togados supremos é crime de Estado, de lesa pátria. “Eu sou o Estado”, dizia o rei. “Eu sou o Estado, eu sou a lei, eu sou a justiça”, diz um ministro da injustiça brasileira, diante de uma multidão de pessoas pedindo, num sete de setembro aí, por mais liberdade e democracia. Esse ministro que deveria zelar pelo Estado Democrático de Direito, que deveria zelar pela justiça, que deveria zelar para, justamente, coibir quaisquer manifestações de instintos animalescos de uns contra os outros, que deveria coibir o instinto primitivo de subjugarmos uns aos outros, por poder, por sexo, por dinheiro, por fome, esse ministro, ele mesmo, satisfaz seus instintos mais animalescos, mais cruéis, usando do poder a ele outorgado pelo Estado brasileiro, por nós. Nós damos a esse ministro o direito de nos tolher, massacrar, censurar, calar nossa voz, nos massacrar. É esse o Estado livre e democrático que criamos pra melhorar nossa vida?
O discurso do ministro da injustiça que oprime e massacra é sutilmente sofisticado: para prender um deputado inimputável, o condena a dez anos de cadeia por indelicadeza verbal. O presidente da República que o perdoa por um crime que não cometeu vira um déspota que devora as leis já devoradas pelo ministro. O ministro da injustiça devora todo o Legislativo atropelando um Poder dizendo que esse poder não funciona por não concordar com ele; o ministro da injustiça censura o Google, pede depoimento de quem discorda dele por atentar contra a soberania nacional. O ministro da injustiça solta pessoas por terrorismo, tráfico de drogas, assassinato, corrupção, mas prende o ex presidente de quem não gosta por um atestado de vacinação. O ministro da injustiça vai te prender e te calar se você disser um pio contra ele. Ainda vai te obrigar a publicar em sua página, teu perfil, tua empresa, tua testa, a opinião dele a respeito de seu projeto de lei de censura que vai calar tua boca. É esse o livre Estado Democrático de Direito justo que melhora nossa vida em sociedade?
Recentemente, o Estado brasileiro proibiu que uma capivara adotada e amada por seu dono ficasse com ele, por ser um animal silvestre. O Estado brasileiro chega a proibir o afeto de um bicho por um ser humano. O ser humano é um bicho curioso: é injusto e cria a justiça para além de seus instintos. O ser humano também pode deturpar a justiça por instintos cruéis e através de instrumentos do Estado, piorar a vida das pessoas, tirando-lhes a liberdade, o direito à opinião e consciência, tirando-lhes até mesmo o direito de amar um bicho, um animal. O Estado brasileiro hoje é um bicho curioso: um animal rude, injusto, que piora a vida de todos, de humanos a capivaras, em nome de seu instinto animalesco.