Em meio ao turbilhão de sinais da escalada do autoritarismo no país, fica até difícil optar por um único tema a ser colocado em foco neste nosso espaço. Ontem mesmo, quando meus dedos, já pousados sobre o teclado do micro, estavam prontos a registrar reflexões sobre a possível indicação do advogado presidencial Zanin ao Supremo, ameaça iminente aos princípios republicanos, mais especificamente ao da repartição dos poderes, eis que deparo com notícia sobre uma lesão efetiva às liberdades de expressão e de imprensa. E como, na ordem de prioridades, o fato consumado atropela as meras expectativas, convido você, caro leitor, ao exame mais aprofundado de uma decisão emblemática, talvez até única em âmbito internacional, que descortina o grau de refinamento da nossa cúpula judiciária na arte não só de cercear o livre pensar como ainda de impor a narrativa a ser oficializada entre nós.
A essa altura, você já percebeu a referência óbvia à censura praticada pelo ministro Alexandre de Moraes contra o Telegram que, de ofício e, mais uma vez, com base em reportagem da Folha de São Paulo – quase equiparada aos agentes da Polícia Federal na investigação dos “neo-crimes”! –, determinou, sob pena de suspensão, a remoção de um conteúdo transmitido pela plataforma aos seus usuários, e o envio de uma nova mensagem, cuidadosamente redigida pelo togado[1]. O despacho monocrático, recheado das vociferações e proclamações das verdades estatais idênticas àquelas trazidas na decisão da semana passada contra o Google e congêneres e comentada aqui[2], e também indevidamente proferido contra empresa fora de sua jurisdição (pois não possui foro privilegiado), se divide basicamente em dois trechos: (i) a ordem de retirada da manifestação opinativa do Telegram sobre o ataque perpetrado à democracia pelo dito PL da Censura, ainda em tramitação; e (ii) a determinação de inserção em seu lugar, pelo próprio Telegram, de nota aos usuários no sentido de que o comunicado anterior teria sido “FLAGRANTE e ILÍCITA DESINFORMAÇÃO atentatória ao Congresso Nacional, ao Poder Judiciário, ao Estado de Direito e à Democracia Brasileira, pois, fraudulentamente, distorceu a discussão.” Vamos por partes.
No mundo livre, crimes são condutas humanas definidas com clareza e precisão pelo legislador, e cuja prática, de tão ameaçadora ao convívio social, sujeita o agente à privação da liberdade e/ou ao pagamento de multa. A título de exemplo, não resta dúvida de que “matar alguém” (homicídio) consiste em ceifar a vida de outrem, ou de que “subtrair coisa móvel” (furto) nada mais é que privar outrem da posse de coisa própria. Tudo muito bem explicitado e previsto em legislação redigida e debatida no Congresso Nacional.
Já na república alexandrina, onde leis formais se tornaram adornos inúteis, qualquer prática pode ser enxergada como “ilícita desinformação”, desde que contrarie as posições do soberano togado. A mensagem original do Telegram apenas reflete o seu entendimento de que a “democracia está sob ataque”, pois o projeto repressor “concede poderes de censura ao governo, (…) cria um sistema de vigilância permanente, (…) e é desnecessário”. Postura externada por um ente privado, da mesma forma como, no pós-impeachment, houve até cineasta que tivesse enxergado o país como uma “democracia em vertigem”[3]. Ora, quer discorde ou divirja das alegações da plataforma, da realizadora de cinema ou de ambas, qual a legitimidade de um representante da justiça estatal para impedir a circulação de opiniões se a Constituição Federal é a primeira a rechaçar qualquer forma de censura e se quem apenas manifesta ideias não incorre em crime algum?
No mundo livre, todo aquele que se sinta pessoalmente ofendido por matéria divulgada em veículo de comunicação dispõe do direito de resposta ou retificação[4], ou seja, da prerrogativa conferida ao indivíduo atingido em sua honra de publicar, na mídia ofensora, a sua versão dos fatos, com o destaque, a publicidade e a periodicidade da notícia original. Frise-se bem, trata-se de uma relação entre partes privadas e em pé de igualdade, onde cabe àquela lesada pelo comunicador a faculdade de trazer a público o seu relato, retirando, assim, a mácula que havia sido lançada sobre a sua reputação.
Na república alexandrina, que não passa de um emaranhado de distorções dos conceitos da vida em liberdade, acabamos de testemunhar um supremo togado determinar, do alto de seu poder de império, a veiculação de conteúdo de sua própria autoria, como se se tratasse de um autêntico direito de resposta. Pura ilusão de alguém inebriado por uma autoridade sem freios! De fato, longe do que possa imaginar Moraes, seu elo com o Telegram deriva de uma relação de poder, que, enquanto tal, deveria ser pautada pela impessoalidade e, desse modo, avessa aos xingamentos próprios à esfera privada dos afetos.
Outrossim, inexiste, na mensagem original da plataforma, qualquer ofensa ou insinuação denegritória à pessoa do togado ou de seus pares, mas tão somente crítica a um sistema que se pretende implantar por meio de um projeto legislativo. Portanto, a determinação de inserção do texto sobre o suposto “atentado ao Congresso Nacional, ao Poder Judiciário, ao Estado de Direito e à Democracia Brasileira”, como verdadeiro exercício de direito de resposta, só pode nos levar à conclusão de que, no imaginário do magistrado, ele, e somente ele, seja a personificação do conjunto “congresso-judiciário-estado de direito-democracia”. Quase uma versão tupiniquim do conhecido “l’État c’est moi!”
E aí tornamos ao adjetivo-chave do nosso título, “subjugada”, alusão ao domínio pela força, e pertencente à mesma família de palavras que “sujeito”, na acepção de alguém submetido às vontades de um soberano. Assim, a subordinação do individuo aos caprichos de um líder, sem os freios da lei ou de outros estamentos, deixou seu rastro no nosso idioma, e em vários outros, como se percebe ao pensar nos mesmos conceitos de “subject” em inglês, de “sujet assujetti” em francês, de “soggetto” em italiano, ou de “untertan” em alemão. Todos referentes à margem estreita de liberdade da pessoa frente aos ditames estatais.
No cenário em que vivemos, somos todos “sujeitos” aos poderes virtualmente ilimitados de togados supremos e, em particular de um, que parece ter avocado para si a prerrogativa de fazer a sua justiça e não a prevista na legislação, e de punir todos aqueles que ousem destoar da narrativa estatal por ele formulada. Hoje, foi a plataforma a “subjugada”; amanhã, poderá ser qualquer um de nós, até mesmo um subserviente, mas que, por motivos insondáveis para os súditos, deixe de convir ao tal “projeto democrático”. Só incertezas e sombras no país que já deixou para trás a legalidade estrita e o apreço às liberdades.
[1] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/moraes-determina-suspensao-do-telegram-por-72-horas-caso-aplicativo-nao-remova-mensagem-sobre-pl-das-fake-news/
[2] https://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/sob-o-fogo-cruzado-da-censura-togada/
[3] Alusão ao filme homônimo de 2019, dirigido por Petra Costa.
[4] Lei 13.188/15, contendo dispositivos da revogada Lei de Imprensa
Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.