Gazeta do Povo
O Supremo Tribunal Federal (STF) está incentivando denúncias contra cidadãos e parlamentares usando como pretexto a necessidade de proteger os membros da Corte e as instituições do Estado. A tendência se intensificou após os atos do 8 de janeiro e se manifesta em postagens nas redes sociais e na inclusão apressada de novos investigados nos inquéritos do Supremo a partir de denúncias.
Em 19 de maio, o STF fez um tuíte incentivando usuários a denunciar publicações com “conteúdos distorcidos ou mentirosos” sobre a Corte. “Espalhe a informação correta! Não compartilhe conteúdos distorcidos ou mentirosos sobre o STF. Se você receber algum conteúdo falso, envie para o programa de Combate à Desinformação do Supremo, para a divulgação da informação verdadeira”, dizia a postagem, que foi apagada alguns dias depois.
Nos últimos meses, o Supremo também virou uma espécie de ouvidoria de políticos: multiplicaram-se pedidos de inclusão de adversários nas investigações conduzidas pelo tribunal. Inquéritos como o das fake news e o dos atos do 8 de janeiro viraram um repositório de revanchismo entre políticos.
O vereador de São Paulo Fernando Holiday (Republicanos), por exemplo, passou a ser investigado como possível incitador dos atos de 8 de janeiro após decisão de março do ministro Alexandre de Moraes, atendendo a pedidos da bancada feminista da Câmara Municipal, que conta com parlamentares do PSOL oponentes de Holiday. No dia seguinte aos ataques em Brasília, PT e PSOL também haviam pedido a investigação de deputados adversários.
O ministro da Justiça, Flávio Dino, solicitou em março a inclusão de sete adversários políticos seus no inquérito das fake news, por declarações feitas após a visita de Dino ao Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. No mês seguinte, Dino pediu a inclusão do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR) no inquérito, alegando o mesmo motivo.
Parlamentares da direita também têm usado o STF como ouvidoria: o senador Rogério Marinho (PL-RN) solicitou a inclusão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no inquérito das fake news por ter insinuado que a operação policial que descobriu um plano de sequestro do senador Sergio Moro (União Brasil) era armação.
Em maio, um grupo de 20 deputados de direita pediu que o Grupo Globo e a Folha de S.Paulo fossem incluídos no inquérito das fake news, alegando que as duas empresas têm “reiteradamente tentado manipular a opinião pública e impactar o voto dos parlamentares ao veicularem textos que criam um cenário de terror para justificar a aprovação da PL das Fake News”.
“Sem dúvida nenhuma, isso não é o papel do STF”, diz o advogado constitucionalista André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão. “O papel do STF não é estimular a denúncia, não é se tornar a ouvidoria do Brasil, assim como também não é o papel dos inquéritos regular a opinião pública. O STF parece estar expandindo o rol do seu ativismo para a parte policial. Faz parte da função policial receber denúncia, não do tribunal da nossa Suprema Corte.”
Para Marsiglia, o STF está criando a “possibilidade de agir de forma vingativa com os adversários a partir da denúncia”. “A gente passou a acreditar que o denuncismo é uma forma de lidar com os problemas. Isso corrompe o Judiciário de várias formas. O STF, para não tomar decisões precipitadas, deveria ser o último, sempre, a tomar as decisões. Se as denúncias são feitas ao STF, ele passa a ser o primeiro a tomar as decisões, o que, sem dúvida alguma, faz com que ele esteja muito propício a precipitar-se”, observa.
O jurista critica, além disso, o recebimento de denúncias em massa, como após os atos do 8 de janeiro. “Quando você tem 80 mil denúncias, como é que você pode averiguar decentemente essas 80 mil? É óbvio que você não tem como fazer isso. Se o STF diz, nas redes, para denunciar, é óbvio que ele espera receber mais de uma denúncia ou de duas. Ele espera receber um volume gigantesco. E receber um volume imenso de denúncias inviabiliza a possibilidade de se fazer qualquer aferição correta.”
O advogado Wallace Oliveira, especialista em Direito Digital e Processual, diz que o estímulo a denúncias excessivas “gera um estado de incoerência e caos no sistema jurídico brasileiro”. Para ele, está havendo “restrição à liberdade de expressão e comunicação de uma parcela da sociedade” por meio de “boletins de ocorrência infundados, que objetivam a penalização de inocentes por puro revanchismo político e ideológico”.
Os inquéritos do STF, na visão dele, “inauguraram o precedente de uma cultura de denuncismo no Brasil”. “Assim como a competência para instaurar inquéritos não incumbe ao STF, a criação de canais de denúncias para processamento de fatos ditos inverídicos não cabe à instituição”, explica Oliveira, recordando que estas são funções da polícia e do Ministério Público.
STF está extrapolando ativismo judicial e criando “ativismo administrativo”, afirma jurista
No tuíte que estimula a denúncia de “conteúdos distorcidos ou mentirosos”, o STF diz que a iniciativa foi criada “para combater práticas que afetam a confiança das pessoas na Corte”.
Para André Marsiglia, “o STF está saindo muito do seu papel, e isso é, sem dúvida, o que afeta a confiança na corte”. “A confiança na Corte existe não pelo combate a qualquer coisa, mas sim pela sua capacidade de julgar de forma técnica aquilo que chega. Uma corte serve para julgar, e os julgamentos têm que ser técnicos, jamais políticos. É isso o que gera confiança. Não é eles se tornarem combatentes de absolutamente nada, nem nos julgamentos e nem administrativamente.”
Marsiglia diz que a postagem solicitando denúncias é um exemplo de como o ativismo judicial já contaminou até os órgãos de apoio da Corte, criando dentro do Supremo o que ele batiza de “ativismo administrativo”.
“Há uma ideia que parece estar hoje presente na Corte de que ela é responsável por uma cruzada contra os atos antidemocráticos, contra as fake news, contra a desinformação, contra o ódio. Essa ideia de que a Suprema Corte tem uma bandeira a ser defendida contra determinados malefícios parece que está se espraiando para fora dos julgados – o que já existe há bastante tempo – e atingindo mesmo as suas postagens nas redes, os seus órgãos de apoio”, comenta.
Outros exemplos do ativismo administrativo, segundo Marsiglia, são a recente campanha “Democracia Inabalada” do Supremo e o excesso de palestras dadas pelos magistrados em diferentes lugares, em que eles reiteram suas visões sobre temas como discurso de ódio, desinformação, fake news e democracia.
“É como se a sociedade tivesse delegado a eles essa prerrogativa de combater em nome dela a respeito desses temas. E eles não têm essa prerrogativa. A única prerrogativa que eles têm é a de julgar, e esse é um ato passivo, não ativo”, afirma Marsiglia.
A Gazeta do Povo entrou em contato com o STF por e-mail e por telefone pedindo esclarecimentos sobre o tuíte que estimulava o uso do canal de denúncias, mas o órgão da República não respondeu à solicitação do jornal.