(J.R. Guzzo, publicado no jornal Gazeta do Povo em 10 de julho de 2023)
Todo mundo, salvo os que não se interessam por esse tipo de coisa, sabe que não existe no Brasil o que nos regimes democráticos normais é conhecido como “segurança jurídica” – a expectativa racional, por parte dos governados, que as leis em vigor no país serão aplicadas quando a Justiça decide alguma questão. É uma noção que desapareceu por aqui, por ação direta do STF e dos galhos mais altos do Poder Judiciário.
Ninguém sabe, hoje, quais as leis que estão ou não estão valendo, porque são o STF e os seus subdepartamentos que decidem quais as leis que se aplicam e quais as que não se aplicam; depende de quem está acionando, ou de quem está sendo acionado. À insegurança jurídica se junta agora a insegurança auditiva – ninguém mais sabe o que vai ouvir dos ministros quando eles falam fora dos autos, e eles passam a vida falando fora dos autos, principalmente em Nova Tork, Lisboa etc. e tal.
A última surpresa nos foi oferecida pelo ministro Luís Roberto Barroso. Ele revelou, em mais um dos seus pronunciamentos à nação, que o STF passou, sim, a ser um “poder político” do Brasil, depois de “um vertiginoso processo de ascensão” – mas não faz “ativismo político”. É mesmo? Como o STF pode ser uma coisa e não fazer a outra? Pois aí está, exatamente, a fotografia do Brasil de hoje. Os ministros do Supremo deram a si próprios o poder de decidir que a Constituição pode ser desrespeitada praticamente todos os dias; basta ver as decisões que tomam. Também deram a si próprios a licença de dizer coisas que não fazem nexo.
Quem autorizou o STF a ser um “poder político” neste país? Alguma emenda constitucional, aprovada por três quintos da Câmara e Senado? Foi algum plebiscito, ou coisa parecida? Não se sabe; foi, segundo Barroso, uma ascensão “vertiginosa”, apenas, e é com isso que o público pagante tem de se contentar. O ministro, como quase sempre acontece quando a “suprema corte” quer lançar algum manifesto, não apresentou nada que possa ser qualificado como argumento. Foi, mais uma vez, o costumeiro angu mental que o STF consegue produzir, com muito palavrório e poucas ideias, quando quer dar instruções ao povo brasileiro. Ao fim, sobrou unicamente um atestado do subdesenvolvimento generalizado da atividade intelectual no Brasil deste 2023.
Barroso tentou explicar o verdadeiro significado da palavra “ativismo”. Segundo ele, o que as pessoas comuns consideram ativismo não é ativismo. Pronto: fica resolvido assim, com uma canetada oral, o problema de explicar que diabo ele quis dizer quando afirmou que o STF “não pratica” ativismo político.
O que parece ser o raciocínio básico de Barroso para justificar as ações do STF tem a profundidade de uma poça d’água, das rasas. Ele diz, basicamente, que as críticas às decisões do Supremo são feitas porque as pessoas “não gostam” do que foi decidido; nesse caso, Barroso diz que “sente muito”. É uma bula do Papa. Não existe, por este modo de ver as coisas, a possibilidade de alguém discordar do STF com algum fundamento racional. E quando alguém critica as barbaridades do Supremo da Venezuela, por exemplo – ou da Coreia do Norte, ou de qualquer das outras aberrações que existem por aí? Será, também, uma questão de torcida? O ministro acha que sim. Ele sente muito.