(Marcel van Hattem, publicado no jornal Gazeta do Povo em 23 de agosto de 2023)
Está proibido desconfiar! No Brasil já não se pode mais desconfiar das autoridades, sobretudo das supremas. Não! Há que confiar, ter fé até – e fé inabalável. É a nova religião da antirrepública que aplica uma anticonstituição: a fé na antidemocracia dos togados, no “Estado Democrático de Direito” cujos preceitos estão apenas na cabeça dos iluministros, neologismo de WhatsApp que merece ser incorporado ao dicionário.
Os preceitos democráticos dos ministros do STF são mais inacessíveis ao cidadão comum do que a Bíblia antes de ter suas primeiras traduções ao alemão popular: no caso do Livro Sagrado, o que estava oculto ao povo pôde aparecer, pois estava escrito. No caso das 11 cabeças do Supremo, só se fosse possível ler pensamentos. Na Constituição e nas leis, por mais complexo que seja o juridiquês, aquilo que dizem os ministros do Supremo em suas sentenças e entrevistas, como diria com carregado sotaque um renomado padre e parapsicólogo brasileiro de origem espanhola: non ecziste – não existe!
No Estado moderno, além de direito é também dever do cidadão desconfiar das autoridades. Parece paradoxal, porém é absolutamente necessário que, em uma democracia constitucional, confie-se nas instituições desconfiando sempre de seus membros. Instituições são compostas por homens e mulheres tão falhos quanto aqueles que não as integram. Portanto, com poder nas mãos, esses mesmos homens e mulheres falhos têm ainda mais potencial tanto para fazer o bem quanto para praticar o mal.
Para compensar a natural e saudável desconfiança da cidadania, o poder das autoridades deve ser limitado às funções que exercem – e estas, limitadas ao essencial para que a vida em sociedade possa florescer por si mesma. Estes são os preceitos de uma democracia liberal, em que os direitos individuais e as liberdades fundamentais são garantidos ao cidadão. O excesso de poder, o abuso, sempre desvirtua em tirania, em ditadura. Como disse o historiador britânico Lord Acton no século 19, “o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. A famosa frase tem uma conclusão menos conhecida, mas talvez ainda mais importante: “de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus”.
Bons ou maus, no Brasil os grandes homens revelam-se cada vez menores. A pequenez de quem não respeita a Constituição e prende ilegalmente, censura inconstitucionalmente e, agora, decide ao arrepio da lei que pode julgar processos em que os defensores são seus familiares, é sintoma de que, de fato, julgam-se deuses infalíveis. Deles, não se pode desconfiar nem quando há claro conflito de interesses.
Sentados no Olimpo do Planalto Central, têm profunda fé em si próprios e querem impor aos brasileiros esta mesma fé. A realidade, porém, é mais dura: a convulsão social como reação à soberba da classe dominante é regra com poucas exceções nas democracias modernas. Não se pode prever quando, nem exatamente como se dará a insurgência, porém a notada apatia de uma população cada vez mais farta da inversão de valores praticada nos altos escalões é presságio de que a fé que se quer impor no Brasil não conta com a devoção de sua população. Felizmente, apesar de cada vez mais proibida, a necessária desconfiança do povo em relação a quem está no poder só tem feito aumentar.