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Democracia inabalada?

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“(…) quando obedecemos às leis, no sentido de normas abstratas estabelecidas independentemente de a quem são aplicadas, não estamos sujeitos à vontade de outrem, e, por isso, somos livres.”- F. Von Hayek

Nas sociedades organizadas, os indivíduos aceitam renunciar a parcela de suas liberdades, subordinando suas condutas ao império das leis em abstrato, e, no plano concreto, a determinações de seus iguais que tenham chegado ao poder por vias legítimas aos olhos daquela coletividade. No entanto, como convencer as pessoas a acatarem os comandos das autoridades constituídas, quando pelo menos metade dos eleitores do país enxergam, no Estado, um braço executivo como verdadeira “torre de marfim” para ex-condenados e indiciados, um legislativo como uma maioria de oportunistas acovardados ou cooptados por emendas bilionárias, e um judiciário como fonte maior de arbítrio, impunidade e insegurança?

Em iniciativa festejada pela opinião pública, o STF lançou um e-book publicado sob a expressão que dá título à nossa coluna – sem a interrogação, por óbvio – sobre o episódio de vandalismo do 08.01[1], cunhado, pela grande mídia e pela própria corte, como “atos golpistas”. Não vou gastar linhas e tempo repetindo, pela enésima vez, que magistrados não podem opinar, fora dos autos, sobre tema ainda em julgamento, o que, por si só, torna a obra um acinte à institucionalidade. Para além dessa obviedade jurídica, vale tentar pinçar, no “texto supremo”, algumas sutilezas que podem ser bons termômetros do nosso Zeitgeist de autoritarismo e consolidação da cúpula judiciária como poder político.

Logo na abertura, o livro nos traz “a palavra da presidente”, ministra Rosa Weber, possível versão laica da invocação religiosa “palavra do Senhor”, que já atribuiria à togada algo de divino, transformando-a em ser inquestionavelmente infalível. Do alto de tamanha potestade, Rosa chega a batizar a data dos eventos em questão, referindo-se a tal ocasião como “Dia da Infâmia”, a ser lembrado na tal obra que, em suas palavras, “condensa, a um só tempo, a indignação, a força, o destemor e a resiliência, na defesa da democracia constitucional.” Seria essa linguagem bélica adequada a uma magistrada cuja função se resumisse à prosaica tarefa de apreciar casos concretos, à luz do direito posto?

Após uma descrição do panorama arquitetônico do Supremo, deparamos com algumas fotos das invasões e depredações, que, longe dos holofotes midiáticos, deveriam estar presas ao recato dos autos, submetidas ao olhar qualificado de peritos técnicos capazes de determinar os danos efetivamente provocados por cada delinquente. Desnecessário dizer, as imagens foram selecionadas por dedos que não julgaram conveniente a exibição de certos takes, como, por exemplo, os vídeos protagonizados pelo então ministro do GSI e por outros militares, em seu trato bastante cordial com os meliantes[2]. Afinal, são cenas de terror, que a benevolente Rosa deve ter achado por bem manter distantes dos olhos de crianças e pessoas mais sensíveis.

Em seguida, somos apresentados à “reação” aos ataques – e prossegue o tom beligerante! – e a mais uma coletânea de fotos, dessa vez exibindo a togada e seus pares ao lado da elite planaltina, todos vestidos com elegância e sem uma ferida sequer. Será que alguém acredita mesmo que, em verdadeiros golpes de Estado, as autoridades do passado tenham conseguido permanecer ilesas e estilosas em seus ternos finos e tailleurs, sem um arranhãozinho no rosto?

Após uma passagem relâmpago pela “vistoria”, que também deveria ser apenas objeto de perícia nos autos, somos assolados por imagens da “reconstrução”, em uma série de fotos exibidas de modo a nos levar, em certos casos, a confundir bagunça e desalinho com demolição completa. Na sequência, deparamos com uma série de bustos reparados, cujos estragos causados pelos vândalos deveriam, reitere-se, constar apenas das provas dos autos, como elementos de formação da convicção dos magistrados sobre a autoria e a extensão dos danos. Se os supremos togados dispusessem de atribuição para o julgamento de pessoas desprovidas de foro privilegiado, é claro.

Chegamos, então, ao trecho sobre a “campanha” designada pelo mesmo título que a obra, com direito a “engajamento e repercussão na mídia”, bem ao estilo político-partidário. Como ápice da politização do assunto, o livro ostenta, orgulhoso, a criação de um “museu do 08.01” (!), a exemplo do Museu do Holocausto ou de museus de grandes guerras, onde relíquias de fatos históricos, pretéritos e já encerrados são preservadas em acervos que mantenham a lembrança de eventos marcantes para o destino de sociedades inteiras. Contudo, no tocante aos atos daquele domingo, não estivemos diante de um fato político, senão de um caso de polícia, que, em qualquer coletividade mentalmente saudável, seria assim tratado e julgado, segundo os ritos vigentes.

Por fim, somos conduzidos a rememorar a “sessão histórica” de abertura deste ano judiciário, com foto da ministra Rosa logo abaixo da expressão “espírito da democracia”, em nítida simbologia de corporificação, em um único ser humano vulnerável e mortal, dos conflitos e múltiplos matizes de todo um sistema democrático. O que, aliás, já se tornou praxe entre os togados, pois, segundo seu colega Barroso, próximo presidente do tribunal, “nós somos a democracia”. Nas páginas subsequentes, deparamos com foto do atual ocupante do Planalto –até pouco tempo atrás, presidiário com a anuência do próprio STF[3] -, do presidente do Senado, do PGR e com as mensagens e as fotos de cada um dos supremos juízes. Quase uma compilação de “apóstolos”, predestinados a anunciarem uma nova era de amor e conciliação entre os brasileiros.

Fazendo as vezes de narrador proustiano, Rosa puxa o fio da memória involuntária (ou nem tanto assim), através de sensações e imagens de sua preferência, em busca de um tempo relativizado para cada um de nós, conforme a posição ocupada em todo esse espetáculo. Afinal, o tempo dos presos políticos, ao desamparo do devido processo legal e omitidos do “livro supremo”, não corre da mesma forma que o tempo de cada um de nós, meros espectadores, e, muito menos, do mesmo modo que o dos togados, responsáveis por ditarem o ritmo dos acontecimentos. Se, em poucos anos, os magistrados de cima se tornaram censores e até políticos, agora se estabelecem em definitivo como narradores dos fatos e editores das fotografias relevantes para um país inteiro.

Por falar em registros imagéticos, causa espanto a inércia dos onipotentes togados supremos diante de robustos indícios de omissão relevante do ministro Dino durante as invasões. Omissão, vale frisar, já destacada por alguns parlamentares, como o deputado Marcel Van Hatten, que, em suas redes, tem clamado pela responsabilização de Dino, pois, segundo o congressista, “enquanto a Praça dos Três Poderes era depredada, Dino manteve um pelotão de choque parado dentro do Ministério da Justiça e outros quatro pelotões no estacionamento do ministério. Somente após as invasões, dois pelotões foram utilizados para a retirada dos invasores[4].”

Gera ainda mais perplexidade a passividade da corte suprema diante da apresentação, por Dino à CPMI, de imagens de irrisórias 4 das 185 câmeras do ministério[5], em visível descumprimento à ordem judicial emanada do próprio ministro Alexandre de Moraes[6]! Sem falar em todas as contradições e malabarismos retóricos do titular da pasta da Justiça, que, após muito empenho em impedir a exibição das cenas, acabou tendo de levar a público um número pífio de registros, sob a escusa de que as imagens teriam sido apagadas por “problema contratual”[7]. Contrato bem pitoresco esse, que estipula a manutenção de algumas imagens e a destruição de muitas, sobretudo em se tratando de provas sobre o evento mais rumoroso do ano…

Ora, onde estão os inquéritos de ofício, as remoções dos cargos (como aconteceu, por exemplo, com o governador Ibaneis Rocha), as suspensões das redes e até as prisões daqueles tidos por togados como disseminadores de desinformação? Como liberal, jamais defenderei o cabimento de qualquer desses monstrengos jurídicos, nem mesmo em detrimento de uma autoridade comunista, assumidamente ávida por tolher as manifestações do nosso pensamento. Porém, é inevitável constatar que o padrão punitivo “inovador” da cúpula judiciária só se aplica a certas figuras cunhadas pelo establishment como “extremistas”, deixando a salvo de questionamentos os supostos redentores da ordem democrática.

Democracia inabalada? Não seria essa uma expressão orwelliana, desenhada para justificar nossa atual sujeição aos desejos de outrem e o consequente comprometimento das liberdades individuais, como assinalado na citação em epígrafe? Assustaria o mestre Hayek. Assusta qualquer indivíduo livre, são, e de boa fé.

[1] https://revistaoeste.com/politica/o-que-diz-o-livro-recem-lancado-do-stf-sobre-o-8-de-janeiro/

[2] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/exclusivo-cameras-mostram-ministro-do-gsi-no-palacio-do-planalto-durante-ataques-do-8-de-janeiro/

[3] https://oglobo.globo.com/politica/lula-disse-dilma-que-stf-esta-acovardado-18893256

[4] https://www.jornaldacidadeonline.com.br/noticias/51242/flavio-dino-foi-criminosamente-omisso-esta-comprovado-diz-marcel-veja-o-video

[5] https://diariodopoder.com.br/brasil-e-regioes/xwk-brasil/dino-so-entregou-imagens-de-4-das-185-cameras-do-ministerio-da-justica

[6] https://jovempan.com.br/noticias/politica/moraes-determina-quebra-do-sigilo-de-imagens-do-planalto-no-8-de-janeiro.html

[7] https://noticias.r7.com/brasilia/dino-diz-que-imagens-do-palacio-da-justica-em-8-de-janeiro-foram-apagadas-por-problema-contratual-30082023

 

Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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