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CNJ: fiscalização ou “caça às bruxas”?

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Apagadas as luzinhas decorativas das festas de final de ano, já é mais que tempo de contabilizar novos estilhaços gerados pelo colapso da nossa ordem constitucional, golpeada, sem trégua, por altos dignitários aos quais incumbiria o dever de ofício de guardá-la. Não interprete essa minuciosa coleta de caquinhos do nosso edifício democrático como sintoma de masoquismo, senão como medida premente à regulação do nosso sinistro institucional de grande porte e como tentativa de mitigar danos ainda maiores. Enquanto mantivermos boa dose de coragem e lucidez no exame de fatos, ainda poderemos identificar diversos elementos causadores do “incêndio” e lutar pela neutralização de sua ação devastadora.

Mal se despediu e já entrou para nossa história judiciária recente como o ano recordista em punições a juízes. Sim, caro leitor, em 23, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), segundo levantamento promovido pela própria instituição, registrou o maior número de sanções a magistrados nos últimos 10 anos[1]. Em meio a algumas punições justas por práticas graves como corrupção e assédio, há que se ter em mente o número expressivo de juízes castigados por meras manifestações opinativas, em mais um fruto venenoso do regime autoritário em plena implantação.

Como debatido neste espaço, o CNJ, durante a última corrida presidencial, havia editado o Provimento 135, indisfarçável instrumento de mordaça, que impunha diversas proibições a juízes, ou melhor, às suas línguas e dedos, vedando, por exemplo, a manifestação de críticas de magistrados ao sistema eleitoral[2]. Tal norma, incisiva demais para permanecer decorativa no papel ou nas telas, tem servido de lastro a uma sistemática perseguição a togados “rebeldes”, que incorram na “arriscada” exposição de suas ideias. Foi o caso, por exemplo, do juiz Marlos Merlek do TRT do Paraná, de reputação ilibada ao longo de quase duas décadas na magistratura, e, ainda assim, investigado e punido pelo CNJ com afastamento do cargo. O gravíssimo “desvio funcional” apontado foi sua participação em um grupo de WhatsApp e, naquele âmbito privado, a manifestação de um comentário sobre certa matéria jornalística, que, na opinião do juiz, “ainda foi ideológica, para variar[3]”. Mas, afinal, magistrados podem externar suas convicções como qualquer um de nós? Em que medida?

Nos termos da Constituição, que ainda deveria viger como nossa lei maior, juízes são proibidos de “dedicar-se à atividade político-partidária[4]”. Ora, nenhuma democracia pode tolerar julgadores desfilando com bandeiras e adesivos partidários, ou em campanha por candidatos a cargos eletivos, em condutas comprometedoras da isenção imperiosa à função judicante. Melhor dizendo, tais atitudes seriam inadmissíveis em tese, bem “em tese” mesmo, pois, na rotina nacional, expressões como “bandeira partidária” e “campanha política” têm sido relativizadas a ponto de autorizarem a divulgação de imagens de figurões togados em apoio ostensivo a caciques políticos e a diversos membros da “corte” destes. Sem qualquer consequência, como bem sabemos.

Já a Lei Orgânica da Magistratura veda manifestações, por parte de magistrados, sobre casos em julgamento, ou sobre decisões de outros órgãos judiciais, salvo em obras técnicas ou no exercício do magistério[5]. Outro dispositivo que soa como piada na terra do histrionismo e do exibicionismo midiático da cúpula judiciária.

Portanto, à luz das normas em vigor, mas cuja eficácia saltou do plano prático para o universo ideal do “dever ser”, magistrados são livres para proferirem comentários opinativos, desde que nem atuem como militantes políticos nem se imiscuam em decisões alheias. Por óbvio, sempre que manifestações vierem a tornar um juiz suspeito para a atuação em um litígio específico, as partes envolvidas poderão suscitar o comprometimento na isenção e, desse modo, pleitear a redistribuição de seu caso a outro magistrado.

No entanto, todas as considerações acima se tornam verborragia inútil se pensarmos que o CNJ, tão incomodado com a “politização” de magistrados de primeira e segunda instâncias, se omite diante da feição ostensivamente política da atuação da elite togada. Se levarmos adiante nosso raciocínio, ousaremos constatar que o Conselho sequer pode apreciar condutas de membros da suprema corte, pois, como decidido por um supremo juiz, sua atribuição se restringe “aos órgãos e juízes situados, hierarquicamente, abaixo do STF, com preeminência deste, como órgão máximo do Poder Judiciário, sobre o Conselho[6]”. Para os recalcitrantes em admitirem toda a extensão da nossa disfuncionalidade, o julgado, em termos mais literais, corresponde a algo do tipo: “por deliberação minha, a entidade fiscalizadora poderá investigar todos os órgãos integrantes do Judiciário, com exceção da cúpula por mim representada”. Assim, que espécie de fiscalização é esta, insuscetível de atingir os ocupantes das mais elevadas posições de mando, quando os “maiorais” deveriam, por sua própria posição privilegiada no sistema, ser os primeiros supervisionados, e bem de perto?

No país do controle de fancaria, mais grave ainda é deparar com um CNJ presidido pelo mesmo togado à frente do STF, fato já suficiente para inviabilizar qualquer perspectiva de controle sério. Ora, nenhum ser humano investido de poder, por mais virtuoso, controla a si próprio. Como fator agravante da conjuntura, o atual presidente de ambos os órgãos, longe de se notabilizar pelas virtudes da moderação e da discrição, já se referiu ao Judiciário como um “poder político”, embora desprovido de voto popular, e se vangloriou de ter “derrotado o bolsonarismo”, uma das correntes políticas em disputa nas urnas. Como se não tivessem bastado tantas “pérolas”, ainda proferiu o famoso “perdeu, mané”, em resposta a um pagador de impostos que suscitava dúvidas em torno das eleições.

Portanto, em aplicação prática de dispositivo de sua própria autoria, os figurões do CNJ gastaram boa parte do finado ano de 23 punindo magistrados de instâncias inferiores por suas livres manifestações enquanto aplaudiam todas as condutas políticas indevidamente praticadas por supremos. Mais um ato da ópera bufa nacional, onde os solistas de toga cantam o que bem entendem, sem respeito às partituras, e a orquestra, cada vez mais perdida e assustada lá do seu fosso, não sabe mais o que tocar, em qual tom ou andamento, e sequer consegue prever quais serão as próximas árias, duetos ou coros entoados no palco. No recém-nascido 24, só nos resta permanecer no teatro, acompanhando e comentando os detalhes da encenação e, sobretudo, lutando pelo que ainda nos resta de liberdade.

[1] https://revistaoeste.com/politica/cnj-triplicou-punicoes-a-juizes-em-2023/

[2] https://www.institutoliberal.org.br/blog/o-cnj-e-sua-mordaca-aos-togados-rebeldes/

[3] https://revistaoeste.com/revista/edicao-185/a-patrulha-do-judiciario/

[4] Artigo 95, parágrafo único, inciso III da CF

[5] Artigo 36, inciso III da LOMAN

[6] ADI 3.367, rel. min. Cezar Peluso, j. 13-4-2005, P, DJ de 22-9-2006

 

Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

 

*Publicado originalmente no Instituto Liberal

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