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Há uma anomalia no país em que um político que leva multidões às ruas está inelegível sem condenação

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(J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 24 de abril de 2024)

 

Quanto mais cedo a elite pensante deste país reconhecer a existência de uma anomalia incurável na política brasileira de hoje, tanto melhor será para a manutenção e o desenvolvimento da democracia. A anomalia é um fato que está à vista de todo mundo: o ex-presidente Jair Bolsonaro é o líder político mais popular do Brasil, algo que pode ser demonstrado fisicamente pelas multidões que atrai a cada vez que comanda uma manifestação de rua. Isso pode ser francamente ruim; muita gente, por sinal, tem certeza que é. Bolsonaro, segundo essa maneira de ver as coisas, foi o pior presidente que o país já teve em sua história, e tudo o que vem dele é um perigo claro e imediato para a sociedade, o regime democrático e a própria civilização em geral. Nada disso, porém, elimina o fato de que ele é o único político brasileiro capaz de levar tanta gente para a rua – e esse político está proibido de disputar qualquer cargo público pelos próximos oito anos. Não foi condenado até agora na Justiça, mas é inelegível.

Não pode ser normal, e não é mesmo normal. Fica mais anormal ainda quando o adversário político número 1 do candidato que não pode ser eleito é um presidente da República que não pode andar 50 metros em qualquer rua do país que preside. Tem medo, ou tem certeza, de levar vaia. Na verdade, Lula não vai a nenhum lugar público do Brasil há dezessete anos, desde 2007 – não foi, sequer, aos jogos da Copa do Mundo de 2014, já no governo de Dilma Rousseff. Seus admiradores dizem que ele não precisa aparecer em público, pois foi declarado pelo TSE como vencedor das eleições de 2022, com pouco mais de 50% dos votos. De fato, precisar ele não precisa; não há nenhuma lei no país obrigando o presidente a comparecer à praça pública, e muito menos a encher de gente a Avenida Paulista ou a Praia de Copacabana, como seu inimigo acaba de fazer. Mas é óbvio que alguma coisa está profundamente errada numa situação política que fica assim.

A reação mais comum do governo e de seu sistema de apoio é negar a realidade – ou, então, dizer que as manifestações do povo são uma ameaça à democracia por parte da “extrema direita”. O presidente do STF, por exemplo, já disse que a presença da população na rua serviria para se contabilizar “quantos fascistas” há no Brasil. Nenhuma dessas duas coisas faz nexo. Não há democracia possível se a realidade é anulada; na verdade, a abolição dos fatos é característica fundamental das ditaduras. Também é uma clara ruptura com a lógica comum sustentar que o cidadão que vai à rua para participar de uma manifestação política ordeira, espontânea e legal é um extremista que quer destruir a democracia. Ao contrário: o direito de livre reunião, quando exercido dentro da lei, é uma das exigências mais elementares de qualquer regime democrático. A esquerda condena os comícios de Bolsonaro? A resposta é fazer comícios maiores a favor de Lula e do STF.

Dizer a verdade – como o governo, o STF e o seu entorno exigem dos que discordam deles nas redes sociais – não pode ser um ato antidemocrático. Um militante da esquerda poderia, perfeitamente, dar a seguinte resposta a quem lhe perguntasse se havia muita gente na manifestação do último domingo no Rio de Janeiro: “Sim, havia muita gente”. Isso não vai fazer dele um bolsonarista. É apenas uma constatação de fatos. Como a democracia seria ameaçada com a exposição da realidade? É claro que multidões na rua não dão razão a ninguém. Mas é claro, também, que fazer de conta que não está acontecendo nada, ou que aquilo que está acontecendo é um “golpe”, não vai ajudar a democracia brasileira a andar nem um milímetro para a frente.

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