(Paulo Polzonoff Jr., publicado no jornal Gazeta do Povo em 05 de maio de 2024)
Lula chegou ao Rio Grande do Sul flagelado por uma enchente histórica fazendo política barata, dizendo que estava torcendo para o Internacional e para o Grêmio. O que você talvez ache que não tem a ver com o momento, mas só porque você é razoavelmente normal. Para gente como Lula, toda tragédia é uma oportunidade de conquistar votos e devotos para a seita que leva seu nome. Mas isso nem foi o pior que aconteceu nos últimos dias.
Aconteceu tanta coisa ruim. Ou melhor, aconteceu tanta coisa que revela o momento desgraçado que este país atravessa. A tal ponto que, em certo momento, fiquei me perguntando se ainda somos mesmo um país chamado Brasil e um povo que costumava se identificar como “brasileiro”. Afinal, é para momentos de calamidade que existe toda a estrutura civilizacional que chamamos de sociedade, não?
No entanto você vê Reinaldo Azevedo culpando o agronegócio pela tragédia da enchente. Ou vê Daniela Lima fazendo leituras políticas dessa mesma tragédia, ignorando o sofrimento das famílias e toda feliz com a possibilidade de Lula tirar proveito da situação. Ou vê a ministra Marina Silva culpar Bolsonaro pela tragédia. Ou vê petistas de outras regiões do país gravando vídeos reagindo com zombaria e desprezo a uma tragédia que, na cabecinha doente deles, atinge apenas brancos fascistas e bolsonaristas.
E mais: você vê gente se aproveitando da comoção para posar de paladino da moralidade e da eficiência na gestão pública, e para encontrar e punir sumariamente supostos responsáveis pela tragédia. Como se a prisão de um burocrata fosse aplacar de alguma forma a dor de quem perdeu parentes, amigos, animais, a casa e o meio de sustento. Mas, enfim, eu queria dizer que você vê todas essas coisas ruins que aconteceram nos últimos dias e.
E se desespera ao constatar que vivemos uma epidemia de ensimesmamento que nos impede de enxergar o outro, seja ele um indivíduo ou um grupo. Estamos tão ocupados em provar que temos razão e somos melhores, e que nossos adversários estão errados e são piores (sem esquecer que são também mal-intencionados!), que nos esquecemos de que somos irmãos, somos brasileiros e neste momento não há nada mais importante do que estender a mão para quem precisa de ajuda. Nada.
Madonna
Por falar nisso, na epidemia de ensimesmamento, é sintomático que nem tenha passado pela cabeça do prefeito Eduardo Paes ou do pessoal do marketing do Itaú cancelar o show daquela senhora caquética que alguém descreveu como uma Dercy Gonçalves ainda mais vulgar, e que atende pelo herético nome artístico de Madonna. Entre a imoralidade de não querer arcar com o prejuízo de um cancelamento e a dignidade de fazer o que é certo, prefeitura e patrocinador preferiram a imoralidade.
E olha que não estou me referindo à imoralidade das cenas de sexo protagonizadas pela diva sexagenária. Até porque aquele teatrinho pornô barato só me causa tédio. Quem ainda se escandaliza com a promiscuidade triste (meu Deus, como é triste!) de alguém que vive de trocar a Eternidade por uma cosquinha nos genitais? Me refiro à imoralidade de justificar a realização do espetáculo sinistro (em mais de um sentido) pelo cálculo financeiro, enquanto corpos de bebês passam boiando por entre os telhados onde se amontoam gaúchos desesperados pelo resgate.
Aliás, a incapacidade de se sacrificar pelo outro é tamanha que nem mesmo personalidades que vivem de sinalizar virtude, como Luciano Huck, tiveram o cuidado de esconder bem escondidinho a indecência de sua alegria macabra. Pelo contrário, ele, que tem pretensões políticas, fez questão de aparecer rindo e se divertindo, todo felizão, como se não houvesse nada mais valioso do que o prazer momentâneo de ouvir uma idosa fazendo playback.
Mas por que é tão difícil olhar para o lado e fazer o bem desinteressado? Por que insistimos em ignorar nossa fragilidade diante da natureza ou nossa impotência diante do aparente acaso? Por que nos escapa a possibilidade de, amanhã ou depois, sermos nós os necessitados da ajuda de estranhos?
Péssima mania
Mas Deus é bom e eu acredito, realmente acredito, que há um propósito nisso tudo. E por “isso tudo” me refiro a Lula e os sacripantas que o cercam, bem com às elites (financeira, intelectual e cultural) que decidiram dar de ombros para essa abstração que nos irmana e que chamamos de Brasil. Há um propósito nisso tudo, embora nos seja difícil identificá-lo em meio aos escombros do que fomos um dia.
Por isso, apesar do tom de revolta deste texto, não posso ir embora sem registrar que nem todos os brasileiros se deixaram corromper, seja pela luta política, seja pela ambição, seja pela submissão aos prazeres. É que a gente tem essa mania, péssima mania, de se ater ao mal, que grita impropérios nas redes sociais e se contorce num orgasmo falso na praia de Copacabana ou que se aproveita de uma tragédia para posar de bom-moço e conseguir votos…
…e acaba se esquecendo de admirar o bem discreto, mas presente e atuante, de quem, neste exato momento, reza, faz uma doação anônima, cede barcos e helicópteros para as operações de resgate ou se arrisca como voluntário, sem jamais exigir reconhecimento, muito menos cobrar retribuição.