(J.R.Guzzo, publicado no jornal Gazeta do Povo em 15 de junho de 2024)
O que estão fazendo com Filipe Martins, assessor do ex-presidente Jair Bolsonaro, é um puro e simples escândalo. Obviamente não é o único. Desde que o processo legal nas ações criminais foi anulado pelos múltiplos inquéritos fora-da-lei do ministro Alexandre de Moraes, a desordem que se criou no sistema de Justiça brasileiro já fez quase tudo.
Com a aprovação integral do STF, a ciência do Direito hoje em vigor no Brasil inventou o flagrante perpétuo. Impôs a prisão preventiva sem prazo para acabar. Suprimiu o direito dos advogados de fazer a sustentação oral na defesa dos seus clientes. Permite, na prática, aplicar a pena de prisão sem julgamento do réu. Opera a “maior vara penal do mundo” na corte suprema de Justiça do país. Abre inquéritos policiais por tempo ilimitado e sujeitos à prorrogação eterna; o mais velho já tem cinco anos inteiros de vida. Nega o direito a tratamento médico de urgência para os presos nos cárceres do STF – e por aí se vai. No caso de Filipe Martins, o ministro Moraes está introduzindo no Direito a doutrina da inocência impossível.
Por esta nova visão do Direito Penal e dos códigos de processo, inédita no mundo civilizado, não só foi invertido o ônus da prova – é o acusado quem tem de provar a própria inocência, e não o acusador quem tem de provar a culpa. No “novo normal” da Justiça brasileira, mesmo provando que é inocente da acusação específica feita contra ele, o acusado continua preso.
Só são consideradas pelo STF provas que incriminem o cidadão, e se estas provas não aparecem depois de quatro meses de investigação, problema dele: a Polícia Federal continua procurando a culpa, e o infeliz continua na cadeia. Martins, suspeito de participar num golpe que seria dado por Bolsonaro e até hoje permanece do mundo da imaginação, foi preso em fevereiro sob a acusação de ter viajado para os Estados Unidos no dia 30 de dezembro de 2023, junto com o ex-presidente.
Não se sabe que crime é esse – sobretudo quando se leva em consideração que o próprio Bolsonaro, que realmente viajou, não é acusado de ter feito a viagem. Mas isso é até o de menos. O complicado, mesmo, é que Martins provou, contraprovou e provou de novo que não viajou para os Estados Unidos nesse dia 30, nem com o ex-chefe e nem com ninguém.
Num grande dos grandes clássicos em matéria de acusação desmentida pelos fatos, Martins já provou fisicamente, com recibos do Uber e da Latam, que estava em Brasília no dia 30, quando é acusado pela PF de ter ido para os Estados Unidos, e em Curitiba no dia seguinte – onde não poderia estar se tivesse viajado para a Flórida na véspera. Mais: o Departamento de Imigração dos Estados Unidos informou que Martins não entrou no território americano na data em que a polícia e Moraes suspeitam que ele foi para lá.
Ou seja, de um lado as autoridades brasileiras não têm nenhuma prova da acusação que fazem e, do outro lado, o acusado apresenta provas materiais de que a acusação é falsa. Mas nada disso muda coisa nenhuma. O assessor do ex-presidente faz parte de um novo tipo de cidadão criado no Brasil pelo STF: o “perpetrador de atentado contra a democracia”, ao qual não se aplicam o Código de Processo Penal nem os direitos civis estabelecidos na Constituição Federal.
Como os apátridas, que não têm a proteção da nacionalidade, os incluídos nos inquéritos do ministro Moraes não têm a proteção das leis em vigor no país. É o “enfrentamento” dos atos contra a democracia, segundo a nova ordem jurídica do STF.