O colapso do sistema: Moraes nega a lei e impõe regime de tortura a mulher com câncer
(J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 07 de agosto de 2024)
Karina dos Reis, uma dona de casa de Araxá, de 44 anos, tem um câncer. Os médicos atestam que ela vive em estado de metástase hepática e precisa, o mais depressa possível, fazer exames de tomografia do tórax e ressonância magnética do abdômen para ter chances de vencer a doença. Mas, além do câncer, Karina tem o ministro Alexandre de Moraes na sua vida. Ela é considerada pelo ministro como uma inimiga do “estado democrático de direito” e está obrigada por ele a usar uma tornozeleira eletrônica – que teria de ser retirada para que os exames possam ser feitos dentro das condições requeridas pela medicina.
A defesa, com o aval dos médicos, pediu a remoção temporária do aparelho, só pelos instantes que durassem a tomo e a ressonância. Alexandre de Moraes negou. Karina continua com o seu câncer e com a tornozeleira do STF.
Isso é tortura, um crime previsto em lei e que não poderia ser cometido pelo mais alto tribunal de justiça do Brasil. É claro que se pode passar o resto da vida escrevendo tratados para se argumentar que não há nada de errado com essa e dezenas de outras decisões do mesmo tipo. Moraes e seus sistemas de apoio dizem que impedir os exames médicos de uma senhora com câncer é essencial para defender a democracia; usam a sua interpretação pessoal da letra da lei para acabar com os direitos mais básicos do ser humano. Mas o fato é que proibir uma pessoa de lutar pela própria vida, como Moraes e o STF estão fazendo com Karina, é a pura e simples negação da lei. Se for assim, para que serviriam as leis? O que existe aqui não tem nada a ver com o “rigor da Justiça”. É apenas crueldade, vingança e abuso do forte contra o fraco.
Hoje, diferente do que acontecia nos porões da ditadura militar, os carcereiros não se importam em esconder a tortura; fazem questão, ao contrário, de colocar suas decisões no papel, selar e assinar embaixo. O ministro Moraes, no caso, se compraz oficialmente em prolongar a agonia de Karina.
Um dia, talvez, quem sabe, é até possível que a licença para a remoção provisória da tornozeleira seja dada, diz ele em seu despacho – mas não agora. No seu veredito sobre os laudos médicos, o ministro decidiu que não está demonstrada “a necessidade imediata de flexibilização da cautelar, de maneira que não há motivos para a suspensão da monitoração eletrônica.” (É assim que ele chama a tornozeleira que não deixa as pessoas saírem de casa – “monitoração eletrônica”.) Karina está com câncer, foi operada e precisa de exames. Moraes e o STF acham que “não há motivos” para tirar a algema que não lhe permite ir ao hospital.
Nossa suprema corte constitucional exige, para que essa permissão seja dada algum dia, que a vítima volte ao STF. De acordo com Moraes, de “posse da data do exame, cirurgia, internação ou de relatório médico circunstanciado” (o português é esse mesmo, letra por letra), ela poderá então apresentar seu pedido de novo.
Que nome se pode dar a isso tudo? O ministro já chamou prisão preventiva de “flexibilização da liberdade de ir e vir”; toda a plateia de Moraes no governo morre de rir e fica batendo palmas para a sua espirituosidade. É claro que vai continuar assim. Já houve um preso que morreu no pátio da penitenciária porque Moraes não deu a permissão para que fosse levado ao hospital e recebesse tratamento de urgência. Já houve uma professora com mais de 60 anos que viu a polícia, a mando do ministro, invadir o quarto de hospital onde estava internada após uma cirurgia para lhe colocar de novo a tornozeleira. Pessoas como ela, que não podem oferecer o mínimo perigo para o Brasil e os 200 milhões de brasileiros, são condenadas a até 17 anos de prisão.
Karina dos Reis, que não tem um tostão no bolso, não conhece nenhuma pessoa importante e nunca cometeu uma infração na vida, não apenas está sendo submetida a tratamento desumano por parte do STF. Está sendo punida por um crime que não cometeu: no dia 8 de janeiro de 2023 estava diante do quartel-general do Exército em Brasília, participando de um protesto pacífico e absolutamente legal até aquele momento. Nunca entrou num dos prédios dos Três Poderes que estavam sendo invadidos por baderneiros armados de estilingue. Nunca depredou nada, nem encostou a mão em ninguém.
Como é possível entrar na cabeça de alguém que ela é uma golpista culpada de “abolição violenta” do Estado de direito? Mas mesmo que tivesse feito isso; mesmo, aliás, se fosse acusada de crime hediondo em primeiro grau. Como aceitar o que o STF está fazendo com ela, e que fez com tantos outros? Karina é um ser humano – antes de ser “de direita”, ou qualquer coisa. Não perdeu seus direitos constitucionais por ter opiniões políticas que o STF não admite. Deveria, no mínimo, receber o tratamento previsto na Lei de Proteção aos Animais. Uma nação que convive com a sordidez dos campos de concentração, abertos ou fechados, e vira a cabeça para não ver nada quanto passa à sua frente, está em colapso moral.