Anistia, a próxima vítima de uma “Corte Inconstitucional”
Em nações regidas pelo império da lei, magistrados restringem sua atuação, na esfera penal, à sobriedade do julgamento de condutas descritas como delitivas pelos legisladores e tidas como puníveis pelo ordenamento vigente. Nos sombrios territórios dominados pelo capricho humano, togados se dão ao luxo de usurpar a atividade legislativa, de modificar situações constituídas, de reescrever o passado e de dispor sobre o futuro da coletividade, tudo ao sabor das próprias conveniências.
Em recente canetada monocrática, o ministro Flávio Dino, do STF, pretensamente imbuído do nobre anseio de honrar os mortos, criou mais um perigoso precedente para a nossa já cambaleante estabilidade jurídica. A pedido do Ministério Público Federal (MPF), o togado comunista propôs ao seu tribunal a discussão de uma tese segundo a qual o crime de ocultação de cadáver não estaria amparado pela Lei da Anistia (Lei 6683/79). Em discurso ideologizado, inspirado pelo filme “Ainda estou aqui”, Dino pavimentou a rota em direção à responsabilização penal de agentes do estado brasileiro pelo desaparecimento de corpos de combatentes na guerrilha do Araguaia, durante o regime militar.
De boas intenções, o inferno está cheio, e das melhores falácias se alimenta a nossa cúpula judiciária. Na visão de Dino, os autores do sumiço dos esqueletos do Araguaia não mereceriam o benefício da anistia por terem incorrido em um chamado crime permanente, cuja consumação se espraia para muito além da data de sua prática. Em outras palavras, como os corpos subtraídos entre os anos de 1961 e 1979 seguem desaparecidos em 2024, o togado sustenta que os responsáveis não poderiam ser anistiados por delitos que se protraem até hoje. Será mesmo?
Por seu cunho de norma penal, em cujo âmbito o que está em jogo é a própria liberdade de ir e vir, a Lei de Anistia tem de ser interpretada de forma restritiva, em consonância apenas com o seu teor literal, por mais abjetas que possam ter sido as condutas de seus beneficiários. Nem mesmo a constitucionalidade da lei de 79 poderia ser questionada por Dino e seus pares, na medida em que o próprio Supremo a reconheceu, em julgamento proferido já no período democrático.
De acordo com a letra fria da lei, a concessão do benefício abarcava, em termos bem genéricos, todos os crimes políticos, os eleitorais e os demais delitos ensejados por motivação política. A preocupação dos governantes, em 79, residia em extinguir a punibilidade tão somente dos ilícitos voltados à derrubada ou à manutenção do modo de exercício do poder desde o golpe de 64, em uma tentativa de apaziguar os ânimos e de facilitar a transição do regime então vigente para uma nova ordem democrática. Portanto, o único critério para a concessão da anistia consistia na natureza política dos crimes, quer se tratasse de delitos de consumação instantânea, como os homicídios, quer se tratasse de crimes permanentes, como os de ocultação de cadáveres. Daí saltar aos olhos a impertinência da discussão suscitada pelo MPF e acatada por Dino, em uma estarrecedora desconexão com a norma sobre a matéria.
Aliás, os envolvidos nesse pseudodebate fingem desconhecer que a própria Lei de Anistia recusava o benefício a indivíduos já condenados pelos crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal e, desse modo, estipulava exceções à regra da anistia aos autores de delitos políticos. Assim, como não cabe a Dino, na qualidade de intérprete da norma, a inserção de uma hipótese excepcional, não prevista pelos agentes políticos da época, a canetada do magistrado comunista pode ser enxergada como mais uma atuação legislativa indevida por parte de uma corte dada à usurpação dos poderes alheios.
O judiciário de Dino, que menospreza a Lei de Anistia de 79 a ponto de pretender “inová-la” para nela inserir a vedação do benefício a autores de crimes permanentes, é o mesmo estamento que escancara sua censura prévia ao PL da Anistia ora em tramitação junto ao parlamento e destinado a isentar de punição todos os atuais presos políticos, inclusive os envolvidos nos episódios do 8 de janeiro. Tanto sob os holofotes midiáticos quanto em declarações “reservadas” a certos jornalistas, não têm sido raras as manifestações de repudio, por supremos togados, ao projeto legislativo por eles rotulado, de forma apriorística e arbitrária, como pretenso desvio de finalidade e ato inconstitucional. Sem qualquer respeito ao dever de continência imposto pelo cargo, ao princípio da inércia do judiciário (segundo o qual magistrados só podem atuar mediante provocação das partes interessadas) e à autonomia legislativa, nossos magistrados de elite não hesitam em intimidar congressistas e em prejulgar uma iniciativa que, se transformada em lei, poderá vir a ter sua constitucionalidade questionada junto ao tribunal por eles integrado.
No caso da Lei de Anistia do final da década de 70, Dino avança rumo à desconstituição de situações formadas à luz da norma vigente na época, expondo pessoas outrora anistiadas à incerteza de uma eventual privação da liberdade. Devido ao afastamento temporal de quase 50 anos em relação ao período da ditadura, o despacho de Dino dificilmente produzirá efeitos práticos, pois imagina-se que a maior parte dos agentes fardados de então já tenha falecido ou esteja entregue à decrepitude. De toda forma, o despacho poderá ser entendido, pelos demais poderes e pela sociedade em geral, como uma mensagem de desprezo à anistia em si, prevista em nossa atual Constituição como prerrogativa do congresso, condicionada à sanção do Executivo. Como panfleto de propaganda subliminar, a deliberação de Dino servirá ainda para associar as práticas da tortura e da ocultação de cadáveres nos anos 70 às condutas dos nossos atuais fardados, buscando legitimar todas as medidas arbitrárias que têm sido tomadas pelo STF e por sua polícia federal contra militares envolvidos na tal “tentativa de golpe bolsonarista” que jamais houve.
A deliberação pretensamente humanitária de Dino trará a asfixia de mais um mecanismo que, apesar de constitucionalmente descrito como faculdade atribuída a agentes políticos, sofrerá um “remanejamento” para ficar a cargo de togados desprovidos de representatividade popular. A força da canetada poderá levar uma massa já acovardada de parlamentares a empurrarem para os fundos inalcançáveis de suas gavetas empoeiradas um projeto que poderia ser redentor para milhares de brasileiros vitimados pelo encarceramento injusto, à margem do devido processo legal.
Os pactos de esquecimento resultantes em anistia tendem a se transformar na mais nova ficção do país que alardeia uma condição democrática, mas banaliza práticas autoritárias. Por aqui, não há mais pactos político-sociais eficazes e muito menos a possibilidade de esquecimento por parte de autoridades eleitas. Afinal, nos tornamos um país de togas, onde os mandachuvas da magistratura conferem autênticas “anistias” a práticas do universo da criminalidade grossa enquanto se recusam a anistiar presos políticos, miseráveis vítimas de seus desmandos. Sob a ótima jurídica, apagão do estado de direito; sob a ótica cristã às vésperas de mais um Natal, ausência de compaixão.
Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.
*Publicado originalmente no Instituto Liberal