Advogados silenciados por uma justiça de ‘faz de conta’
Anos atrás, cada um de nós, advogados, colecionava seu próprio acervo de estórias que davam cor e dinamismo à nossa atuação forense. Podíamos passar horas debruçados sobre casos complexos, selecionando argumentos tão enxutos quanto robustos para nossas falas, assim como podíamos esquecer o almoço para evitar atrasos às sessões de julgamento e até correr para trocar a calça pantalona pela primeira saia disponível só para atender a rigorosos códigos de vestuário de certos tribunais. Esses e outros sacrifícios eram mais que compensados pelos quinze minutos da tão aguardada sustentação oral, durante os quais empregávamos todos os recursos inerentes às expressões verbal e gestual para convencer magistrados sobre a procedência das nossas razões. Para nós, profissionais, aqueles momentos consagravam o fiel cumprimento dos nossos mandatos, no esplendor da nobre arte de advocare, ou seja, de falar em nome de nossos clientes; para as partes por nós representadas, que custeavam nossas horas de trabalho em idas ao juízo e até deslocamentos aéreos para atuação em cortes de outros estados, as sustentações representavam a possível obtenção de votos favoráveis, de pedidos de vista para um exame mais minucioso de nossas alegações ou até uma alavanca para o êxito em recursos subsequentes.
Todas essas vivências, porém, ficaram no tempo da lembrança. No final do ano passado, o CNJ publicou a Resolução 591/24, que, em processos eletrônicos, substituiu a participação dos causídicos nas sessões remotas pelo envio de uma “sustentação prévia”, contida em vídeo a ser apresentado até 48 horas antes do início do julgamento.
A figura da sustentação assíncrona, imposta por um órgão que abandonou suas funções institucionais de controle da magistratura para se tornar “puxadinho” de um judiciário abusivamente onipotente, já nasceu inconstitucional. A medida, atentatória à garantia constitucional da ampla defesa, configurou mais uma atuação legislativa indevida de um conselho disciplinar. Em vez de cumprir suas funções de fiscalizar e punir malfeitos de magistrados, o órgão se arrogou a emitir norma sobre ritos processuais, em afronta ao art. 22, I da Constituição, segundo o qual somente lei federal pode dispor sobre direito processual. Não satisfeito, o CNJ tratorou o artigo 937 do Código de Processo Civil, bastante literal ao prever a realização das sustentações das partes “na sessão de julgamento”, e ainda extinguiu o direito do advogado de falar nos tribunais – e, por consequência, em suas representações virtuais -, conforme previsto no Estatuto da OAB (Lei 8906/94).
Tão escancaradamente abusiva foi a medida que até o conselho federal da Ordem deixou de lado sua omissão conivente com o atual autoritarismo togado para formular uma polida reclamação contra a tal deliberação. Como nenhuma autoridade abusiva retrocede em seus desmandos, o ministro Barroso, presidente do STF e do CNJ, rejeitou o questionamento da OAB e se restringiu a postergar a entrada em vigor da nova norma. Do alto de seu poder sem freios, o togado, sob a alegação de que a assincronia seria benéfica à agilização no exame dos processos, apenas concedeu um “período de graça” para a implementação de sua determinação pelos tribunais brasileiros.
Face à obstinação do nosso primeiro juiz em manter o mandamento da “sustentação prévia”, a seccional paulista da Ordem inseriu, em seu site oficial, um comentário crítico à nova praxe, enquanto a gaúcha, na figura de seu presidente, manifestou seu protesto na mídia, mediante a publicação do artigo intitulado “Pelo direito à sustentação oral”. Apenas duas dentre as vinte e sete seccionais país afora; apenas umas poucas vozes esparsas do universo jurídico em meio a milhões de causídicos e acadêmicos. Onde podem estar todas essas figuras apassivadas diante de uma deliberação que tornou o seu próprio ofício um mero adorno?
Talvez estejam bastante “ocupadas” em diálogos com seus pares da Ordem e com togados próximos, com vistas à inclusão de seus nomes nas listas do quinto constitucional, em busca da concretização de seu sonho de ingresso em tribunais, graças a nomeações políticas. Também é provável que os advogados emudecidos estejam dedicados, dia e noite, ao oferecimento dos conhecidos “embargos auriculares”, inexistentes no CPC, mas que permeiam as agendas de famosos causídicos, em encontros fora dos autos com seus juízes, seja nas sombras de gabinetes, em whiskerias, ou até em salas de grandes escritórios, reservadas ao recebimento de potentados de toga.
Na terra onde supremos togados gozam as delícias de tours internacionais e convescotes bancados pelas partes interessadas em ações sob sua jurisdição, e onde a elite judiciária se permite apreciar causas patrocinadas por seus próprios parentes, a advocacia se torna mero formalismo necessário à chancela de um “faz-de-conta”, de um jogo jogado à luz de uma lógica nada relacionada à jurídica. Se o nosso judiciário escandaliza veículos midiáticos das distantes Alemanha e Suíça por sua complacência com a corrupção grossa e pela promiscuidade escancarada entre magistrados e seus jurisdicionados, é bastante previsível que tal ambiente pervertido prescinda de esforços argumentativos e passe a girar em torno de troca de favores pessoais. Nesse cenário, não causa surpresa a decretação da obrigatoriedade das “sustentações assíncronas”, inseridas no processo virtual apenas para constarem como uma forma qualquer de manifestação oral das partes. Os “acertamentos” dos litígios, em particular das grandes causas, passam bem longe do debate pautado pela ciência do direito.
Porém, como a advocacia não é profissão para covardes, é possível que a beleza das letras jurídicas ainda inflame a coragem de vários colegas, sobretudo dos mais jovens e idealistas, e os estimule a criticar a podridão reinante e a clamar por mudanças. O retorno das sustentações orais durante as sessões virtuais de julgamento já representará uma derrota para o velho establishment desacreditado e um prestígio para os advogados ainda comprometidos com o seu ofício. Sigamos lutando pelo nosso direito aos “olhos nos olhos” com os juízes; esse será um pequeno passo para cada um de nós, mas um salto gigantesco na reconstrução lenta, gradual e penosa de um sistema judiciário mais funcional.
Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.
*Publicado originalmente no Instituto Liberal