Mutilação genital feminina é uma das principais causas de morte de meninas onde é praticada
Por Urze D. Flowe, Arpita Ghosh e James Rockey, The Conversation
A mutilação genital feminina (MGF) é uma prática cultural profundamente arraigada que afeta cerca de 200 milhões de mulheres e meninas. É praticado em pelo menos 25 países africanos, bem como em partes do Oriente Médio e da Ásia e entre populações de imigrantes em todo o mundo.
É uma prática tradicional prejudicial que envolve a remoção ou dano do tecido genital feminino. Muitas vezes é “justificado” por crenças culturais sobre o controle da sexualidade feminina e da capacidade de casamento. A MGF causa danos físicos e psicológicos imediatos e duradouros a meninas e mulheres, incluindo dor intensa, complicações durante o parto, infecções e traumas.
Reunimos nossa experiência em economia e violência de gênero para examinar o excesso de mortalidade (mortes evitáveis) devido à MGF. Nossa nova pesquisa agora revela uma realidade devastadora: a MGF é uma das principais causas de morte de meninas e mulheres jovens nos países onde é praticada. A MGF pode resultar em morte por sangramento grave, infecção, choque ou trabalho de parto obstruído.
Nosso estudo estima que causa aproximadamente 44.000 mortes a cada ano nos 15 países que examinamos. Isso equivale a uma jovem ou menina a cada 12 minutos.
Isso a torna uma causa de morte mais significativa nos países estudados do que qualquer outra, excluindo infecção, malária e infecções respiratórias ou tuberculose. Em outras palavras, é uma causa maior de morte do que o HIV/Aids, sarampo, meningite e muitas outras ameaças à saúde bem conhecidas para mulheres jovens e meninas nesses países.
Pesquisas anteriores mostraram que a MGF leva a dor intensa, sangramento e infecção. Mas rastrear mortes causadas diretamente pela prática tem sido quase impossível. Isso ocorre em parte porque a MGF é ilegal em muitos países onde ocorre e geralmente ocorre em ambientes não clínicos sem supervisão médica.
Onde a crise é mais grave
A prática é particularmente prevalente em vários países africanos. Na Guiné, nossos dados mostram que 97% das mulheres e meninas foram submetidas à MGF, enquanto no Mali o número é de 83% e em Serra Leoa, 90%. As altas taxas de prevalência no Egito, com 87% das mulheres e meninas afetadas, são um lembrete de que a MGF não se limita à África Subsaariana.
Para o nosso estudo, analisamos dados dos 15 países africanos para os quais estão disponíveis informações abrangentes sobre a incidência de MGF “padrão ouro”. Ou seja, os dados são abrangentes, confiáveis e amplamente aceitos para pesquisa, formulação de políticas e esforços de defesa para combater a MGF.
Desenvolvemos uma nova abordagem para ajudar a superar as lacunas anteriores nos dados. Combinamos dados sobre a proporção de meninas submetidas a MGF em diferentes idades com taxas de mortalidade específicas por idade em 15 países entre 1990 e 2020. A idade em que a MGF ocorre varia significativamente de acordo com o país. Na Nigéria, 93% dos procedimentos são realizados em meninas com menos de cinco anos de idade. Em contraste, em Serra Leoa, a maioria das meninas passa pelo procedimento entre as idades de 10 e 14 anos.
Como as condições de saúde variam de lugar para lugar e ao longo do tempo, e variam no mesmo lugar de um ano para o outro, fizemos questão de considerar essas diferenças. Isso nos ajudou a descobrir se mais meninas estavam morrendo nas idades em que a MGF geralmente acontece em cada país.
Por exemplo, no Chade, 11,2% das meninas são submetidas à MGF de 0 a 4 anos, 57,2% de 5 a 9 anos e 30% de 10 a 14 anos. Pudemos ver como as taxas de mortalidade mudaram entre essas faixas etárias em comparação com países com diferentes padrões de MGF.
Essa abordagem estatística cuidadosa nos ajudou a identificar o excesso de mortes associadas à prática, ao mesmo tempo em que contabilizava outros fatores que podem afetar a mortalidade infantil.
Descobertas impressionantes
Nossa análise revelou que quando a proporção de meninas submetidas à MGF em uma determinada faixa etária aumenta em 50 pontos percentuais, sua taxa de mortalidade aumenta em 0,1 pontos percentuais. Embora isso possa parecer pequeno, quando aplicado em toda a população dos países afetados, isso se traduz em dezenas de milhares de mortes evitáveis anualmente.
A escala é impressionante: enquanto os conflitos armados na África causaram aproximadamente 48.000 mortes em combate por ano entre 1995 e 2015, nossa pesquisa sugere que a MGF leva a cerca de 44.000 mortes anualmente. Isso coloca a MGF entre os mais sérios desafios de saúde pública enfrentados por essas nações.
Além dos números
Essas estatísticas representam vidas reais interrompidas. A maioria dos procedimentos de MGF é realizada sem anestesia, supervisão médica adequada ou equipamento estéril. As complicações resultantes podem incluir sangramento grave, infecção e choque. Mesmo quando não é imediatamente fatal, a prática pode levar a problemas de saúde a longo prazo e aumento dos riscos durante o parto.
O impacto vai além da saúde física. Os sobreviventes muitas vezes enfrentam traumas psicológicos e desafios sociais. Em muitas comunidades, a MGF está profundamente enraizada nas práticas culturais e ligada às perspectivas de casamento, tornando difícil para as famílias resistir à pressão para continuar a tradição.
Crise urgente
A MGF não é apenas uma violação dos direitos humanos – é uma crise de saúde pública que exige atenção urgente. Embora tenha havido progresso em algumas áreas, com algumas comunidades abandonando a prática, nossa pesquisa sugere que os esforços atuais para combater a MGF precisam ser drasticamente ampliados.
A pandemia de COVID-19 potencialmente agravou a situação, devido a impactos mais amplos da pandemia nas sociedades, economias e sistemas de saúde. A ONU estima que a pandemia pode ter levado a 2 milhões de casos adicionais de MGF que poderiam ter sido evitados. Com base em nossas estimativas de mortalidade, isso pode resultar em aproximadamente 4.000 mortes adicionais nos 15 países que estudamos.
O caminho a seguir
Acabar com a MGF requer uma abordagem multifacetada. As reformas legais são cruciais – a prática permanece legal em cinco dos 28 países onde é mais comumente praticada. No entanto, as leis por si só não são suficientes. O envolvimento da comunidade, a educação e o apoio a organizações de base são essenciais para mudar crenças e práticas culturais profundamente arraigadas.
Pesquisas anteriores mostraram que campanhas de informação e iniciativas lideradas pela comunidade podem ser eficazes. Por exemplo, estudos documentaram reduções nas taxas de MGF após o aumento do alcance das mídias sociais no Egito e o uso de filmes educativos mostrando diferentes visões sobre a MGF.
Mais importante ainda, qualquer solução deve envolver as comunidades onde a MGF é praticada. Nossa pesquisa ressalta que não se trata apenas de mudar tradições – trata-se de salvar vidas. Cada ano de atraso significa dezenas de milhares de mortes evitáveis.
Nossos resultados sugerem que o fim da MGF deve ser considerado uma prioridade tão urgente quanto o combate às principais doenças infecciosas. A vida de milhões de meninas e mulheres jovens depende disso.