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Invisibilidade: artifício inédito para a blindagem de decretos supremos

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Entrevistas histriônicas, aulas magnas, visitas ao parlamento e até ensaio fotográfico para veículo estrangeiro. Todas essas formas de aparição pública, fora de sessões de julgamento e dos autos dos processos, têm preenchido a rotina anômala de magistrados supremos que, por sua deliberação exclusiva, trocaram a prosaica atividade judicante pelo desempenho de papéis quase míticos na pseudo-redenção de uma democracia em ruínas ou até no protagonismo “heroico” de uma história ainda em curso. Contudo, em recente julgamento sobre tema de enorme impacto social, nossos narcisos de toga optaram por encobrir seu ego por trás de um conveniente anonimato.

Na última semana, após anos de irregularidades e insegurança jurídica, chegou ao final a tramitação da chamada “ADPF das Favelas”, medida proposta junto ao Supremo pela sigla esquerdista PSB, com vistas à redução de uma alegada letalidade policial. Final com sabor amargo de interlúdio, pois, no âmbito desse segundo processo estrutural sob a sua condução, o tribunal, em vez de encerrar sua atuação com o anúncio da decisão, se permitirá monitorar o cumprimento do julgado. Ao arrepio da Constituição e das leis, procederá a uma intervenção, por prazo indeterminado, nas políticas de segurança pública do estado do Rio de Janeiro.

Em atitude inédita, o STF apresentou a decisão per curiam (em nome da corte), em voto único, lido pelo ministro Barroso sem individualização da postura de cada membro do colegiado. O julgado foi construído a portas fechadas, divulgado no melhor estilo disruptivo do “um por todos e todos por um”, e, segundo interlocutores próximos ao togado presidente, sinalizou “união e consenso” no seio do tribunal. Não se tratou de decisão unânime, onde todos os magistrados tivessem convergido em direção a um mesmo entendimento sobre a matéria; ao contrário, a deliberação chegou pronta, sem qualquer informação sobre o modo de obtenção do consenso decisório, sobre os participantes dos debates ou sobre a metodologia adotada na avaliação da causa. Em ótimo português, não se soube como votou cada ministro e, muito menos, os fundamentos por eles empregados na justificativa de suas posições.

Nossos “criativos” supremos parecem ter esquecido que, nos termos do artigo 941 do Código de Processo Civil, o presidente da sessão só pode anunciar o resultado do julgamento depois de proferidos todos os votos. Como, em nosso sistema de prevalência da lei escrita sobre inovações jurisprudenciais, a adoção do formato per curiam teria exigido uma adaptação legislativa, e como tal alteração sequer foi cogitada pelo parlamento, o modelo decisório não poderia ter sido empregado. Muito menos pela elite judiciária, da qual se esperaria rigor na aplicação das normas vigentes no país.

Definida, pelo dicionário jurídico Black’s, como “decisão proferida por um tribunal recursal, sem a identificação da pessoa do juiz que a redigiu”, a forma de deliberação per curiam tem sofrido críticas ácidas até mesmo nos Estados Unidos, onde a praxe judiciária a autoriza. Até meados do século passado, esse formato costumava ser empregado, no hemisfério norte, em temas de baixa complexidade ou em despachos de mera movimentação de processos, em que não coubesse ao juiz qualquer avaliação do cerne (mérito) do assunto. Mais recentemente, sua aplicação vem sendo ampliada como subterfúgio conveniente para a resolução de assuntos controversos, já que, sem a individualização dos votos, juízes ficam a salvo de críticas por seu entendimento em matérias polêmicas. Caso de grande repercussão midiática foi o litígio sobre a corrida presidencial protagonizada por G. Bush e Al Gore (no ano 2000) e solucionado mediante uma decisão per curiam da corte americana, destinada a atenuar acusações de viés político no julgado.

Porém, acadêmicos e até togados do país das liberdades vêm se insurgindo contra esse formato decisório, que, na maioria esmagadora dos casos, frustra os esforços das partes – e da própria sociedade! – de responsabilizar togados por suas atitudes individuais. Como é inerente a qualquer cultura liberal e democrática, cabe a todos os membros do tribunal em questão a obrigação de justificar as razões e o modo como chegaram a uma certa deliberação, sendo a clareza na fundamentação judicial um elemento imprescindível para que os litigantes, seus advogados e até a mídia possam aferir a compatibilidade do julgado com o teor das leis invocadas.

Ao assinarem seus votos, togados assumem a responsabilidade pelo teor e pelas consequências de seus entendimentos. Para integrantes de uma suprema corte, que representa não apenas a voz definitiva na interpretação da Constituição local como também a fonte de certas decisões vinculantes para as demais instâncias, a obrigação de prestar contas sobre os fundamentos de julgados deveria ser inafastável. Até mesmo para permitir que operadores do Direito, formadores de opinião e atores políticos avaliem se uma certa decisão implicou violação tão grave a ponto de justificar um impedimento do juiz ou eventuais sanções penais contra este.

De volta ao nosso microcosmo da ADPF das Favelas, poderíamos e deveríamos ser capazes de identificar quais foram os supremos togados responsáveis por se imiscuírem na esfera da gestão estadual ao determinarem que o governador do Rio de Janeiro elaborasse um “plano” para a retomada das áreas atualmente sob o domínio de facções. Da mesma forma, teríamos de ter acesso a elementos que nos autorizassem a apontar o dedo contra os togados responsáveis pela imposição, ao governo fluminense e à polícia local, de diversas obrigações não previstas na legislação, tais como a de elaboração de relatórios ao final de cada operação policial e o envio, pelo estado ao Ministério Público, de todos os respectivos dados. Afronta ao princípio da legalidade estrita, pela qual certas e determinadas canetas deveriam estar aptas a responder.

Mais grave ainda: teríamos de conhecer os magistrados responsáveis pela “invencionice” de submeter eventuais descumprimentos do julgado a um magistrado auxiliar, a ser ainda designado pelo ministro Fachin. Pelo desejo de togados anônimos, policiais e/ou membros do Ministério Público ou do governo fluminense podem vir a ser privados de seu juiz natural e sujeitos à deliberação de um magistrado incompetente, cuja nomeação caiba a Fachin, sabe-se lá com base em quais critérios. Tal dispositivo do julgado implicará na criação de um juízo de exceção (não previsto nem na Constituição nem na legislação processual), caracterizando uma possível atuação política por parte dos togados “autores” de mais essa criação jurídica. Contudo, como sequer sabemos de quem se trata, não se abre qualquer perspectiva, por mais remota, de pleitear o impedimento dos togados responsáveis junto ao Senado.

Não subestime, caro leitor, a possibilidade de multiplicação desses julgados per curiam em nossa cúpula togada. Após um inegável esgotamento das decisões monocráticas, elaboradas e reviradas como folhetins baratos nos últimos anos, o modelo per curiam pode ser bastante útil à blindagem de decretos supremos sob o manto do anonimato. Por vezes midiáticos, por vezes invisíveis, nossos togados podem adotar, em suas deliberações, o formato que melhor couber às suas conveniências pessoais. Afinal, quando as normas jurídicas “caem em desuso”, sobra o espaço inesgotável dos desejos dos donos do poder.

 

Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

*Publicado originalmente no Instituto Liberal

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